sábado, 26 de maio de 2018

Sigamos



E narrando a partida o locutor a todo momento exaltava a grandeza do Vasco. Falava da história, enumerava títulos, tetracampeão brasileiro, campeão da Libertadores, mas em nenhum momento, nas mais de duas horas de transmissão, em nenhum momento ele falou do Sulamericano de 48, mesmo com o jogo sendo disputado no mesmo lugar do primeiro campeonato continental de clubes da história, exatos setenta anos depois, nem com o gancho da data redonda o narrador que exaltava a história do Vasco falou sequer do Expresso da Vitória, assim como todas as outras emissoras, todos os sites e jornais esportivos também não falaram.

A Libertadores deixou de ser uma possibilidade com a volta triunfal dos árbitros da CBF apitando, este ano, jogos entre brasileiros no torneio. Eles andavam distantes destes embates tão importantes desde a campanha vitoriosa, única, do segundo mais querido da mídia, notório amarelão na Copa. Na semifinal, contra o Santos, faltando dois ou três minutos pra ser confirmada a classificação do Timão, o bandeirinha nacional não se controlava de tanta alegria e desenhava bolas enormes no gramado com seu spray de espuma. Nas quartas-de-final, contra o Vasco, todas as emissoras de tevê tiveram de embarcar na onda do tira-teima corretivo, mostrado com quarenta ou cinquenta minutos de atraso, torto, manipulado pra tentar dizer que o gol legal de Alecssandro tinha, sim, que ter sido anulado como foi, garantindo dessa forma a invencibilidade, no mata-mata, da meta paulista.

Maior de todos os prejudicados por um árbitro brasileiro num jogo caseiro de Libertadores, disparado, o Galo Mineiro brigou firme e conseguiu que seu confronto com o São Paulo, pelas oitavas de 2013, fosse apitado por um estrangeiro. Passou, foi campeão e desde então não se via mais brasileiro arbitrando duelos entre brasileiros nas competições continentais. Até que o Vasco voltou à Libertadores, e justamente quando voltou o Vasco, voltaram os juízes brasileiros, da CBF, aos jogos entre clubes nacionais.

E no jogo decisivo entre Vasco e Cruzeiro, em São Januário, com o time começando bem, apoiado pela torcida, já tendo chegado com duas boas oportunidades, com o Caldeirão aquecendo pra partida de vida e morte, o juiz brasileiro, dos mais elogiados pelos especialistas e, fisicamente, dos mais bombados, o brasileirão musculosão da vez validou na cara dura o primeiro gol do Cruzeiro, com três jogadores do time mineiro impedidos na jogada. Três impedidos e nada, gol legal do Cruzeiro, segundo sua senhoria, o juiz da CBF, e acabou-se ali a chance do tri sulamericano para o Vasco.

Quando já estava 3 a 0 pra eles, depois do início do segundo tempo no qual Riascos meteu, meio sem querer, na trave, quando o time ao menos mostrava algum ânimo, ali, ao não marcar falta clara de Sassá em Werley, ali o juizão garantiu a goleada que tornaria tudo inquestionável. Quatro a zero não tem o que falar, disseram todos os especialistas, sem que nenhum deles cogitasse vislumbrar o que poderia acontecer na partida se, em vez de 1 a 0 pro Cruzeiro, um erro de arbitragem botasse no placar, com São Januário inflamado, 1 a 0 pro Vasco.

Com a eliminação veio o caos esperado, com direito a renúncia coletiva de diretoria botando ainda mais lenha na guerra interna, eterna, do Vasco. Denúncias contra o presidente, torcida organizada invadindo São Januário, ameaças a jogadores combinadas com atrasos de salário e no jogo seguinte, contra o América Mineiro no Caldeirão esvaziado, o time fez o melhor segundo tempo da temporada e, de virada, em respeito à nossa história conseguiu o simbolismo nada desprezável de, logo depois de levar, vencer de quatro, no mesmo gramado, com grande atuação de Ríos, de Caio Monteiro, de Paulão, até de Kelvin e, principalmente, de Bruno Cosendey.

Depois veio o carma do Vitória e do André Lima, juntos, e Desábato errou feio, e Werley fez contra sem juiz nem bandeirinha, nem assistente de linha, nem repórter nem especialista, sem ninguém ter notado que a curva da batida do escanteio fez a bola sair, e muito, pela linha de fundo. O Vasco perdeu em casa quando, com uma vitória simples, assumiria a liderança do campeonato, e com um jogo a menos. E a derrota, somada a outra pela Copa do Brasil, diante do Bahia, mantinha o clima tenso, difícil, afirmavam todos os especialistas, muito difícil para o Vasco o jogo seguinte contra o ultra-mega-superfavorito, o multimilionário Flamengo.

Em campo, porém, o que se viu foi o Vasco combalido, à beira do falido, dominar as ações no primeiro tempo, no qual os rubro-negros abriram a contagem com o tradicional erro de arbitragem a favor deles. Diego, impedido, participou da armação para o chute de Everton Ribeiro, de longe, que Martin Silva rebateu mal, nos pés da joia superfaturada da Gávea. Logo depois Diego deu carrinho por trás em Tiago Galhardo, pegou na bola e na sequência, com a bunda, imprensou o pé do adversário, torcendo o tornozelo do meia vascaíno. O juiz não deu nem falta, enquanto o narrador falava em desarme certeiro.

Ao som da mulambada animada, vibrando com o gol irregular que lhes garantia a vitória e a manutenção da liderança, o narrador dizia, sem conter a empolgação, que a torcida do Flamengo não parava de cantar, mas disse isso na hora em que Pikachu bateu o escanteio para Andrés Ríos cabecear pra trás, na mais antiga das jogadas ensaiadas. Wagner estufou a rede num peixinho cinematográfico e a torcida do Flamengo, no ato, parou de cantar.

Tiago Galhardo já tinha chutado fraco, em cima do goleiro deles, já tinha mandado pro gol até de bicicleta, e Wagner também pegou cruzamento de primeira, obrigando Diego Alves a boa defesa, quando acabou o primeiro tempo. No segundo, o jogo foi morno, com o time das cores de Exu um pouquinho melhor até Martin Silva compensar a falha no gol com impedimento, pegando o arremate cara a cara do jovem Lincoln. No contra-ataque, Pikachu foi travado na hora do gol da virada e depois veio a briga que começou com Everton Ribeiro dando chutinho no Riascos, embaixo, e depois de empurrado, caindo, com as mãos no rostinho como se estivesse chorando, tadinho.

O juiz deu mais três minutos inexplicáveis, nos quais deixou de dar duas faltas claras em Kelvin, outra em Pikachu, em contra-ataques do Vasco. Do outro lado do meio-campo, qualquer sopro que gerasse a queda de um rubro-negro era bola parada, na área, contra o Vasco, isso com narrador e comentarista considerando tudo dentro da normalidade. Com o jogo terminado, com o Galo Mineiro de 1981 e de 2013 assumindo a liderança, com a vitória do Vasco impedida por um erro de arbitragem, por mais um gol ilegal do lado de sempre no clássico, o pessoal do Flamengo, muy malandramente, como sói acontecer, resolveu, vejam só, reclamar da arbitragem, a sério, e não foram ridicularizados por isso por ninguém na mídia especializada a não ser um ídolo da história deles.

Beneficiado por mais uma entre tantas faltas inexistentes, essa no minuto final da final em que o queridinho teve ainda um pênalti de presente pra conseguir o placar que precisava, na bancada do programa ao vivo Petkovic riu quando ouviu as reclamações da diretoria da Gávea. Mas o gol do Flamengo teve impedimento, disse ele, na hora, mas só ele, ao que parece, se deu ao trabalho de repetir o óbvio, porque os outros lá, e mais tantos em tantas emissoras, a maioria levou mesmo a sério as reclamações dos flamenguistas, alguns até corroborando.

O fato é que o Vasco voltava a ter uma boa atuação, dominando o time dito muito melhor que o dele e só não ganhando graças ao juiz, a três dias da despedida da Libertadores. Veio então, como se não bastasse, mais uma confusão, provocada pela ingenuidade de uns poucos jogadores, pela imbecilidade coletiva dos torcedores raivosos das redes sociais, que já vaiaram Alan Kardec, Alex Teixeira e Philippe Coutinho, já vaiaram Mateus Vital e agora vaiam Evander, e pelas trapalhadas de uma diretoria que acredita na mídia especializada, que abaixa a cabeça pra fakes e robôs da internet.

Tudo contra, tudo conturbado, assim chegou o Vasco para o duelo final, no gramado sagrado do Estádio Nacional de Santiago, o mesmo, exatamente o mesmo no qual foram disputados todos os jogos do Campeonato Sulamericano de Clubes Campeões, de 14 de fevereiro a 14 de março de 1948. E narrando a partida o locutor a todo momento exaltava a grandeza do Vasco. Falava da história, enumerava títulos, tetracampeão brasileiro, campeão da Libertadores, mas em nenhum momento, nas mais de duas horas de transmissão, em nenhum momento ele falou do Sulamericano de 48, mesmo com o jogo sendo disputado no mesmo lugar do primeiro campeonato continental de clubes da história, exatos setenta anos depois, nem com o gancho da data redonda o narrador que exaltava a história do Vasco falou sequer do Expresso da Vitória, assim como todas as outras emissoras, todos os sites e jornais esportivos também não falaram, nem antes, nem durante, nem depois do jogo, o que nos leva à pergunta inevitável, que qualquer criança faria diante desse fato: por quê?

Tivesse sido o Flamengo o campeão do Sulamericano de 48, tivesse o rubro-negro jogado contra um time chileno no mesmo estádio do campeonato, 70 anos depois, exatos, e o narrador lembraria de 15 em 15 minutos, no mínimo, que ali, naquele gramado sagrado, o queridinho tinha sido o primeiro campeão continental da história. Mas este campeão, pra todo o sempre, foi e é o Vasco, e o fato de ter acontecido o jogo de terça-feira no Estádio Nacional de Santiago, e de o Sulamericano de 48 não ter sido lembrado por especialista algum mostra o quanto cala fundo, na nossa mídia especializada, a realidade cabal e inquestionável, imutável, de que o Vasco é o primeiro campeão continental da história do futebol.

A Conmebol já reconheceu o título de 48 oficialmente, já o equiparou à Liberta ao incluir o Vasco na Supercopa dos Campeões da Libertadores de 1997, mas ainda há especialista que prefere fingir que não houve reconhecimento. E na ginástica pra reforçar esse esquecimento, simplesmente não falam do campeonato, ignoram os mais evidentes motivos, jornalísticos principalmente, pra tentar incluir o Sulamericano de 48 na mesma vala de Copas Rio, Copas Kirim e tantos outros torneios amistosos internacionais.

Então o narrador exalta a história do Vasco sem falar da principal conquista dessa história, e faz isso narrando um jogo no mesmo estádio dessa conquista. Exalta a história do Vasco, mas seguindo certos limites, e também lembrando a todo momento que hoje o time não é mais aquele, que o Vasco está mal, cheio de dívidas, que o time é limitado etc e tal. Assim a mídia especializada exalta o Vasco, escondendo títulos, ignorando ganchos jornalísticos, lembrando sempre que o momento do clube é ruim, que o time, na opinião dela, é fraco.

Pra sorte do Vasco, se existe a mídia torcendo contra, diminuindo nossos feitos, existem também, mais fortes que ela, os deuses da Bola. O empate contra o Cruzeiro no Mineirão, quando nossos adversários que há 20 anos quebraram Pedrinho, quebraram dessa vez Paulinho, e outro empate improvável, contra o Racing, com uma a menos, quando fomos ajudados pelos fantasmas de São Januário, como mostra o post abaixo, essas duas boas atuações em meio ao resto nada agradável proporcionaram a chance de chegar à última rodada brigando por algo, no caso, a vaga na Copa Sulamericana. E aí entraram em campo, mais uma vez a nosso favor, os deuses da Bola.

Bruno Silva foi Danilo Alvim, misturado com Augusto, Lelé, Jorge e Friaça. Wagner passou a Ríos com a precisão de Maneca, Ipojucã ou Chico, e Ríos chutou com a força de Ademir, de Ismael ou de Dimas no primeiro gol de nossa vitória única na fase de grupos. Depois, ungido por Barbosa, Martin Silva primeiro segurou firme a bola atrasada no balão, na estourada de Rafael Galhardo, e em seguida deu o chutão certeiro, que encontrou o baixinho Pikachu, que igualou Eli em tamanho pra fazer de cabeça o gol da classificação, no gramado sagrado, histórico, legendário do Estádio Nacional de Santiago, no Chile.

O Vasco castigado, roubado, tumultuado poderia terminar a Libertadores como a pior campanha de um brasileiro na história, igualando o desempenho do Bangu de 1985. Em vez disso, escapou da lanterna de seu grupo garantindo a classificação para a Sulamericana um ano depois de um tal Flamengo ter sido vice, o que não deixa de ser um bom sinal. Desfalcado, desacreditado, diminuído até quando é supostamente exaltado, o Vasco segue seu rumo em competições internacionais neste ano em que celebramos o septuagenário do Sulamericano, junto com os 20 anos da Libertadores.

Sigamos, pois.

O Vasco, a imprensa e um blog no meio

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