"...o especialista estrangeiro foi o único na mesa, e na cobertura em geral da final, que se saiba, foi o único a lembrar que o goleiro mais decisivo da decisão, vencedor, campeão, vinha do que ele chamou ao vivo, na lata, de grande escola do Vasco da Gama. Fábio era do Vasco, garoto, quando Carlos Germano era titular e Helton era reserva."
Enquanto
não volta o Brasileiro, nesse período chato do calendário sem jogos do Vasco, é
tempo ainda de lembrar o último grande acontecimento do futebol nacional, a
final apoteótica da Copa do Brasil em dois embates sofríveis, decididos, com o reconhecimento
e a condenação da mídia especializada, pelos goleiros. E no programa de tevê
que tem redação no nome, cujo apresentador, diga-se de passagem, é um dos
poucos no ramo a cutucar a flapress de vez em quando, neste programa estavam
reunidos o editor da sacaneada no Muralha (aquela do editorial de primeira
página retirando o apelido do goleiro) e o jornalista estrangeiro.
Na manhã
seguinte à sofrida derrota rubro-negra, derrota no pênalti do craque do time,
que assim provou fazer jus, sim, claro, à tradição da camisa 10 da Gávea, na
manhã seguinte à derrota que alçou o Flamengo ao posto de maior vice da
história da Copa, o clima na grande mídia em geral era muito mais de tristeza,
perplexidade, do que de alegria. Ninguém nunca iria imaginar, nesse clima, nem
bem dez horas depois da escorregada final de Thiago Neves, ninguém jamais
pensaria em homenagear ao vivo, justamente, o Vasco, ninguém a não ser o
jornalista estrangeiro, no caso, do país dos inventores do esporte.
Imune às
verdades e veredictos repetidos a esmo nas redações daqui pra justificar o
protecionismo, que a torcida é maior, compra mais, reclama mais, o especialista
estrangeiro foi o único na mesa, e na cobertura em geral da final, que se
saiba, foi o único a lembrar que o goleiro mais decisivo da decisão, vencedor,
campeão, vinha do que ele chamou ao vivo, na lata, de grande escola do Vasco da
Gama. Fábio era do Vasco, garoto, quando Carlos Germano era titular e Helton
era reserva. O jornalista estrangeiro lembrou isso e disse, ainda, que o
goleiro do Cruzeiro, que pegou pênalti do Luan na semifinal e do Diego na
final, aliava a frieza, a colocação de Germano com a elasticidade de Helton, o
que não deixa de ser verdade.
O assunto foi rapidamente debelado, não se
falou mais de Vasco na mesa, claro, mas aqui fica o elogio tardio à capacidade
de observação do jornalista estrangeiro, e a defesa de cada vez mais
intercâmbio na nossa mídia esportiva, pra arejar conceitos, valorizar mais a
história em detrimento da quantidade de cliques ou curtidas. Fica também a
inspiração para um texto em homenagem aos goleiros históricos, campeões pelo
Vasco, e como quem escreve nasceu em 1972, pede-se licença ao Nelson mitológico
de 1922, 23 e 24, ao Jaguaré inigualável de 1929 e 31 (de quem peguei o rosto
emprestado no perfil, não sei se perceberam), ao maior de todos, Moacir
Barbosa, ao Carlos Alberto de 1956 e 57, ao Andrada de 1970 e 74 e a outros
goleiros de antigamente, porque só é possível falar de quem se viu jogar no
campo, in loco, e nesse caso a lista tem de começar com um goleiro que tem tudo
a ver com a grande questão da decisão, a escolha pra que lado pular na decisão
por pênaltis, esse saltando aí em cima, na foto do Wilson Alves Cordeiro.
Mazaropi já
tinha pegado, sem rebote, o pênalti de Zico na decisão da Taça Guanabara de
1976. No ano seguinte, a decisão era do segundo turno, ainda não Taça Rio, e o
Vasco, bicampeão da Taça Guanabara em 1977, seria o campeão estadual se
vencesse. Assim como Alex Muralha, bode expiatório das frustrações alimentadas
no dia-a-dia dos prognósticos sempre positivos da mídia, nas três primeiras
cobranças do adversário, no caso o Flamengo, Mazaropi pulou para o mesmo lado e
tomou o gol. Muralha manteve-se fiel à sua direita e deu no que deu. Mazaropi
trocou o canto na quarta cobrança, do então garoto novo Tita, e defendeu. O Vasco
foi campeão carioca e ali, no Maracanã lotado, Mazaropi conquistava mais 90
minutos sem ser vazado, na caminhada que lhe rende até hoje o recorde mundial absoluto,
disparado, de minutos seguidos sem tomar gol, 1816 minutos de maio de 1977 a
setembro de 78, muito por conta também de uma linha de defesa com Orlando Lelé,
Abel, Geraldo e Marco Antônio, que ficou um turno inteiro do estadual sem levar
gol e tinha o singelo apelido de Barreira do Diabo.
O que mais
dizer de Mazaropi? Que ele mandava abrir a barreira quando o Zico ajeitava a
bola pra bater falta na entrada da área, mandava abrir e pegava, e que ele
também fez história no Grêmio, campeão da Libertadores e Intercontinental,
pegando, de novo, pênalti fundamental, contra o América de Cáli. E Mazaropi
defendia ainda o Vasco quando o sucessor dele já nos dava alegrias, pegando
tudo no denso nevoeiro da serra, antes e depois do gol de Anapolina.
Acácio era
o goleiro do Serrano na vitória histórica da briosa equipe petropolitana, que
tirou do Flamengo a chance de um inédito tetracampeonato, ainda que em três
anos, em 1980. Dois anos depois foi alçado à titularidade às vésperas do
triangular final do campeonato, entre Vasco, Flamengo e América. E diante de
Tita, Adílio, Nunes e toda essa gente que o outro lado canta em verso e prosa,
diante dessa galera, recém saído do Serrano, do banco do Mazaropi, Acácio
fechou o gol com direito a defesa em chute pegando na veia de Zico dentro da
área, iniciando uma bela tradição pessoal, de agarrar como nunca em decisões,
sem deixar passar nada, o que conseguiu repetir nos estaduais de 1987, 88 e,
principalmente, no Brasileiro de 1989.
Acácio
conseguiu ainda pegar mais pênaltis que Mazaropi, beneficiado também por ter
jogado todos os jogos de um Brasileiro em que o empate, em qualquer jogo da
fase inicial, levava à decisão dessa forma. Num jogo contra o Fluminense, todo
mundo acertou e a decisão ficou para os goleiros. Acácio pegou o chute de
Ricardo Pinto e, depois, fez o gol chutando no canto fraco, errado,
pererecando. Pegou ainda pênalti do Higuita, num jogo depois anulado, na
Medellín onde reinava Pablo Escobar. E no solo sagrado do Estádio Nacional de
Santiago, onde Barbosa fez o que fez contra o River Plate de Di Stéfano, Acácio
honrou a tradição pegando o pênalti decisivo contra o Colo Colo, nas oitavas-de-final
da Libertadores de 1990. Um ano depois, antes de ter sua trajetória
erroneamente interrompida por Régis, o que nos custou o Brasileiro de 1992,
Carlos Germano já se apresentava como legítimo sucessor de Acácio.
A calma
desde muito novo, as defesas parecendo, todas, fáceis, a colocação perfeita e o
primeiro tricampeonato da história do Vasco com o mesmo goleiro nos três anos,
assim começou Carlos Germano quando, enfim, se firmou no Vasco. A impressão,
pelo menos a da memória combalida, é de que ele não caía, nem quando pulava lá
no canto, nem pertinho do ângulo, no alto, como na falta do Gallardo na
semifinal da Libertadores, em São Januário. O Carlos Germano dava a impressão
de que pulava e continuava sempre de pé, tal a simplicidade com que ele
defendia as bolas, sem nada de acrobático, como se cumprisse a rotina de
sempre, batendo ponto, sem chegar nem perto, graças aos céus, de cometer o pecado
de vibrar antes do apito final, por qualquer defesa isolada, imperdoável na
gangorra que é a vida de um goleiro.
Foi desse
jeito calmo, caindo de pé, sem perder o ar de sujeito tranquilo, cumpridor de
seus deveres, que Carlos Germano evitou talvez uma briga feia, totalmente
desarrazoada, na arquibancada apertada do Maracanã, no minuto final da decisão
do Brasileiro de 1997, quando Oséas subiu deixando Odvan na saudade, pra
cabecear o cruzamento perfeito a dois passos da pequena área e na frente dele,
tapando a visão do lance bem naquela hora apareceu do nada a mão do vendedor,
as faixas, e o grito do cara: olha a faixa do Vascão campeão! Se a bola
entrasse, era bem possível que este torcedor ensandecido, aos vinte e cinco de
idade, entrasse numa de arrumar confusão sem razão alguma pra isso, mas nada
aconteceu graças a Carlos Germano ali, no lugar exato pra defender sem cair,
como se fosse fácil, garantindo o tri nacional e depois, no ano do Centenário,
o bi sul-americano, ele que assim como Acácio e Mazaropi, tinha o seu sucessor
no banco.
Herdeiro da
linhagem de Nelson, Jaguaré e Barbosa, Helton entrou no time mais ou menos como
Acácio, só que em vez de final de Carioca, foi jogado às feras no primeiro
Mundial da Fifa. Na final não tomou gol e pegou pênalti do Marcelinho, e
naquele ano mesmo iria protagonizar aquela que talvez seja a atuação mais
espetacular de um goleiro do Vasco, pois parece mesmo não haver registros
cinematográficos, infelizmente, do que Barbosa fez ao pé da Cordilheira dos
Andes, diante do ataque tido como fulminante de La Máquina.
Contra o
mesmo River Plate, só que no estádio dele, em pleno Monumental de Nuñez Helton
deixou estupefatos os argentinos num jogo em que até drible de letra deu em
atacante adversário, um jogo em que o Vasco foi pressionado constantemente por
Burrito Ortega, Pablo Aimar, Saviola e Cia e... ganhou de 4 a 1. Depois o
Helton conquistou Mercosul e Brasileiro ao mesmo tempo, como nenhum outro
goleiro, e em termos de carreira, talvez tenha sido o mais bem sucedido de
todos eles, pois fez história como titular absoluto, durante anos, de outro
clube gigante, de outro continente, no caso o Futebol Clube do Porto, onde,
entre algumas copas e campeonatos portugueses, ergueu como capitão a Liga
Europa.
Fábio
estava no banco de Helton e teve tempo de ser campeão estadual como titular
absoluto em 2003. No ano seguinte, abandonou o clube que rondava a zona de rebaixamento
pra ir fazer sua história no Cruzeiro, encerrando a feliz fileira de bons
goleiros, um atrás do outro desde Andrada, e deixando um vácuo só preenchido
cinco anos depois, por Fernando Prass.
Primeiro
goleiro a erguer uma taça como capitão no Vasco, no caso a Copa do Brasil de
2011, Prass não conquistou outro título, mas fez aquela sequência de defesas
cara a cara no fim do jogo contra o Flamengo no Brasileiro de 2010, num dos
derradeiros jogos do velho Maracanã. E dois ou três minutos depois, já nos
descontos, pegou falta do Petkovic, garantindo a não derrota para o maior rival
naquele jogo histórico, o último do time no estádio de toda uma cidade,
imortal, tão bem inaugurado, em termos de clubes, pelo Expresso da Vitória, com
a primeira taça, e cuja alma foi assassinada pelo capital financeiro, sob
sorrisos de ignorância complacente da mídia especializada sem um texto sequer,
sem uma campanha contra nem qualquer contestação ao projeto que viria a
descaracterizar e inviabilizar comercialmente o Maraca, todos, repórteres,
editores, cronistas, todas à época embasbacados pelas cadeirinhas acolchoadas,
dobráveis, do tal padrão Fifa.
Fernando
Prass fez ainda outra incrível sequência de defesas cara a cara nos minutos
finais, e contra outro rubro-negro, na vitória suada de 1 a 0 sobre o futuro
rebaixado Atlético Goianiense, no Brasileiro de 2012. Lembro-me bem dessa
porque vi de perto, da social de São Januário, e me recordo ainda mais da
maioria da torcida, os mais jovens, saindo do estádio revoltada, vaiando porque
o time tinha jogado mal, e eu felicíssimo com os três pontos no campeonato de
pontos corridos, com a vitória do Vasco garantida por Prass que não tinha a unanimidade
da torcida, era criticado por boa parte dela, inclusive, até sair do Vasco pra
fazer sua história no Palmeiras, e passar a ser muito mais valorizado pelos
vascaínos, até por quem não gostava dele.
O vácuo dessa vez foi de um ano apenas, tempo
suficiente para um rebaixamento e pra que os ares cisplatinos nos enviassem o
goleiro que já é bicampeão estadual, um deles invicto, e que defendeu o Vasco
na maior sequência sem derrotas de sua história. Longa vida a Martin Silva, que
ainda tem muito a conquistar até 2020 e além, honrando a tradição exaltada não
por ninguém da triste, inchada imprensa esportiva nacional após derrota tão
sofrida, na marca da cal, não, mas por ele que, assim como os goleiros, merece
nossa homenagem: o jornalista estrangeiro.