sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

O sonho interrompido do especialista


Foto: Carlos Gregório Jr./Vasco

E quando acordou, no dia seguinte o especialista já estava pronto pra continuar a falar mal do Vasco, ele e os outros que logo lançaram a notícia do talvez, quem sabe, do coelhinho felpudo que falou pra raposa matreira e pra dois passarinhos que contaram a um especialista qualquer, tudo em off, sobre a possibilidade, sim, de Martín Silva sair do Vasco, a qualquer momento.

O especialista lá no fundo guardava uma esperança. Ao vivo, repetindo seus comentários com o viés de sempre na tevê, secava como manda o manual, sem medo de errar, querendo, na verdade, ter a boca calada ao afirmar que a fatura já estava liquidada, que de 4 a 0 ninguém virava. Tinha ainda entalado outro 4 a 0, há nem bem três semanas quando, antes do jogo, ao ser questionado sobre seus prognósticos, apostou na vitória por 1 a 0 ou 2 a 1 do nobilíssimo Universidad de Concepción. Depois teve mais uma goleada, com gol levando soco na cara, e o especialista não estava mais tão confiante assim no digníssimo Jorge Wilstermann, quando se postou na frente da televisão mantendo, no entanto, aquele fiapo de esperança que, lá no fundo, ainda guardava.

E veio o primeiro gol, o segundo a tevê nem teve tempo de mostrar e aos sete minutos o jogo já estava 2 a 0 para o grande Jorge, único time boliviano a eliminar um brasileiro na história, no caso o glorioso Galo mineiro, de Fred e Robinho, segurando o 0 a 0 no Mineirão. O Jorge Wilstermann de Cochabamba, a 2,5 mil metros de altitude, que jogava a 300 metros acima disso, em Sucre, e naquele momento ganhava a torcida entusiasmada do especialista e de três ou quatro colegas que com ele entrariam ao vivo, para mais um programa de debate futebolístico, assim que o jogo terminasse.

Nem o especialista nem os colegas dele notaram que o escanteio do primeiro gol era pra ter sido tiro de meta, o que eliminaria não só o primeiro como o segundo gol, conquistado na saída da bola que deveria estar na quina da pequena área, se a regra fosse aplicada corretamente, e não no meio-campo, de onde ela foi roubada pra iniciar o contra-ataque e inflamar a torcida dos especialistas, que virou paixão rasgada, desenfreada, quando o Jorge, o Jorjão da Bolívia, fez o terceiro gol com menos de vinte minutos de jogo.

O especialista primeiro previu o rebaixamento, como todo ano. Depois, a muito custo, diante da tabela na reta final da competição aceitou cogitar a classificação pra Libertadores, mas só se houvesse G9, só se o queridinho dele, maior vice de copas secundárias da América, fizesse o que nunca fez em mais de cento e vinte anos, que é vencer uma final de taça continental contra um grande time estrangeiro. Com a garantia da sétima colocação em caso de vitória simples na última rodada, em casa, sobre a rebaixada Ponte Preta, o especialista admitiu a Pré-Libertadores, nunca se esquecendo do pré antes do nome da sagrada taça e ressaltando que o time era muito limitado, reclamando também do excesso de vagas banalizando a Copa, o que não tinha feito no ano anterior, quando o número de vagas para brasileiros era o mesmo.

Passada a Universidad de Concepción, que depois de ter a confiança do especialista pra prever vitória de 1 a 0 ou 2 a 1 virou, segundo ele, a maior baba do futebol chileno, veio o Jorge no caminho e a confiança foi renovada, e se mantinha alta mesmo com 2 a 0 contra no jogo de ida, porque o time boliviano se mostrava consistente, firme, só tinha levado gol de pura raça, de Paulão, estourando com Alex Pirulito no carrinho, e de Paulinho, metendo a cabeça na bola e no murro do goleiro.

Dois a zero dava pra virar, e se rolasse um golzinho, então, aí estava tudo garantido, pensava o especialista aos 41 do segundo tempo, quando Pikachu soltou a bomba desgovernada que estourou em Riascos e ficou dominada, meio que embaralhada, pelo colombiano. Riascos rolou pra trás, Pikachu soltou a bomba dessa vez muy bem endereçada e a confiança do especialista foi abalada de vez com o quarto gol, de Rildo, no último minuto, em impedimento, compensando o pênalti escancarado não marcado em Riascos quando o jogo estava 2 a 0.

O quarto gol do Vasco no último minuto em São Januário e na Bolívia, aos 18 do primeiro tempo, já estava 3 a 0. Vai, Jorge! O especialista incentivava de brincadeira junto com os outros que, talvez não tão empolgados, torciam da mesma forma não filmados àquela hora, claro, incentivavam o Jorge e calculavam, se lembravam, definiam juntos que estavam todos diante de algo que, se fosse confirmado, seria muito maior que qualquer Defensor, qualquer Palestino, León ou América do México, maior que qualquer Tolima ou Guarani paraguaio.

O especialista quase pulou da cadeira quando Paulão quase marcou contra, prendeu a respiração no chute de longe de Evander, defendido pelo goleiro, e começou a ficar apreensivo vendo o placar estancar até o fim do primeiro tempo e toda a metade do segundo, mesmo com Alex Pirulito entrando completamente impedido sem nada ser marcado nem notado pelos especialistas, mesmo com inversões de faltas, laterais, tiros de meta e escanteios sempre para o mesmo lado.

Sete a um não dava mais, pensava o especialista, ainda esperançoso porque cinco, dava, mais dois gols e tudo estaria consumado, e quando Zenteno, el gordo, completou o cruzamento oriundo da falta inexistente e fez o quarto gol de cabeça, impedido, os quatro, cinco especialistas não quiseram nem saber do bandeirinha, de tira-teima, nada. Pularam dos sofás e poltronas, todos, bateram as mãos espalmadas, eufóricos pela confirmação do sonho, pra entrarem logo ao vivo falando daquilo que não teria nem comparação com eliminações em casa, diante do Barcelona de Guaiaquil, maior campeão do Equador, finalista da Liberta duas vezes, em 90 e no ano da graça de 1998, de algo que superaria, sem sombra de dúvida, qualquer Defensa y Justicia ou Nacional paraguaio, qualquer das goleadas da LDU ou gol do Emelec.

O especialista xingou sinceramente Alex Pirulito, que agarrou e empurrou Riascos sem nada ser marcado e teve seu chute de dentro da pequena área desviado pelos deuses da Bola, por cima do travessão. O especialista roía as unhas, suava, ansiava e mantinha a esperança porque poderia ter sido pior, se o juiz tivesse marcado o pênalti claro em Rildo. A decisão por pênaltis, antes do jogo, era um sonho inimaginável, por isso o especialista manteve a confiança mesmo com Ríos marcando com calma, mas previu o pior na primeira defesa de Martín Silva, na primeira cobrança do Jorge Wilstermann, naquele que desde a final da última Copa do Brasil, também nos pênaltis, ficou conhecido como o canto do Muralha.

Pikachu meteu no ângulo, e a esperança do especialista só não foi por água abaixo, durante a chuva torrencial no Rio de Janeiro, porque o Jorge converteu sua segunda cobrança e, logo em seguida, Desábato mandou na trave. Iria acontecer, claro que iria, não tinha acontecido o 4 a 0 por acaso, acreditava o especialista quando Martín Silva fez sua segunda defesa, evitando o empate, no mesmo canto do Muralha. Com Wellington foi outro grito engasgado, bola na trave de novo, só que entrando, e o especialista só não deixou de acreditar ali porque o Wilster acertou o segundo.

E quando Rildo, com a chance de acabar com tudo aquilo, jogou fraco, nas mãos do goleiro dois passos adiantado, o especialista voltou a ter certeza. Sim, aconteceria aquilo que seria incomparável, infinitamente maior que uma lanterna de grupo, quarta colocação de quadrangular e eliminação com duas rodadas de antecedência, tomando que tomando do Olimpia, do Once Caldas e da Universidad Católica, algo superior a sair da Libertadores num grupo de quatro, quando três se classificavam, ou ser alijado na fase de grupos, jogando como o campeão do torneio. O especialista sonhava, queria logo a carta eterna na manga pra lançar sempre que necessário, sem precisar falar nunca mais dos micos extraordinários do time dele em competições porque haveria um maior ainda, e do outro time, do eterno vilão campeão sulamericano antes mesmo da existência da Libertadores, e campeão também da própria Liberta, exatamente na semana do Centenário, sem escândalo de arbitragem e eliminando times grandes no caminho.

Então Pirulito bateu no outro canto, não o do Muralha, e Martín Silva fez sua terceira defesa em cinco cobranças, ele que nunca, em quatro anos de time, se destacou muito como pegador de pênaltis. E minutos depois, o âncora abriu o programa dizendo que os três, quatro, cinco debatedores ali poderiam estar falando do maior vexame da história do futebol brasileiro na história da Libertadores. Só que não.

E ao comentar o jogo, o especialista não conseguia esconder a carranca de quem tinha chegado muito perto de ver o sonho realizado. Ridículo, vexatório, patético eram alguns dos adjetivos dirigidos ao time classificado, enquanto outro especialista falou em 7 a 1, e tudo por causa de um jogo na altitude, atípico, que de acordo com as regras do futebol deveria ter terminado 1 a 1, o que não tira a razão de quem prefere criticar o apagão do time.

O Evander parando e deixando de acompanhar El Gordo Zenteno no primeiro gol, o Ricardo perdendo disputas fundamentais de cabeça, o Thiago Galhardo sendo expulso daquela maneira no mínimo idiota, o que tornou tudo ainda mais dramático, o próprio Martín Silva podendo evitar e não evitando o primeiro e o quarto gols, a diretoria trocando as altitudes e usando a estratégia adequada à outra que não a de 2,8 mil metros onde foi o jogo, tudo isso deve ser visto, revisto e consertado, lógico, mas o blog aqui prefere, por ora, comemorar, porque 70 anos depois de darem a Barbosa o dom de fechar o gol contra o maior ataque da história do futebol argentino, os deuses da Bola botaram de novo um goleiro vascaíno na berlinda do futebol sulamericano.

E o especialista se lembrou do San Lorenzo em seu comentário sobre o Jorge x Vasco, a mais doída das cinco eliminações na fase de grupos do time dele, recordista brasileiro nesse quesito, pior até do que a do gol do Emelec (certamente a mais engraçada), porque foi a terceira seguida, quando ele e todos os outros especialistas consideravam o time de Muralha, Rafael Vaz, Rodinei, Pará e Márcio Araújo como superfavorito, a tudo.

Depois, programa terminado, o especialista foi pra casa dormir e sonhou com Pirulito acertando a bomba da pequena área, o 5 a 0 estampado nas manchetes e a caçoada eterna, tão vergonhosa que faria cair no esquecimento o América do México, o Léon, a LDU, o Tolima, o Once Caldas, a Universidad Católica, o Defensa e Justicia, o San Lorenzo, o Guarani e o Nacional paraguaios e o gol do Emelec, só que não. E quando acordou, no dia seguinte o especialista já estava pronto pra continuar a falar mal do Vasco, ele e os outros que logo lançaram a notícia do talvez, quem sabe, do coelhinho felpudo que falou pra raposa matreira e pra dois passarinhos que contaram a um especialista qualquer, tudo em off, sobre a possibilidade, sim, de Martín Silva sair do Vasco, a qualquer momento.

P.S. Se Zé Ricardo realmente se deixar seduzir pela grana, que a diretoria tenha a suprema inteligência de fazer de Valdir Bigode o novo técnico, é só o que o A pauta é Vasco deseja com relação a este assunto.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Muito respeito nessa hora

Foto: Getty Images

“Sem medo de parecer desrespeitoso com o Jorge Wilstermann (...), o Vasco reconhece que a meta é encaminhar a classificação logo neste primeiro jogo, hoje, às 21h45, em São Januário”. Sem que ninguém, nem jogador, nem dirigente, nem treinador, nem massagista, nem médico nem torcedor do Vasco tenha falado isso ao jornal, o Globo afirma porque quer, na primeira frase do texto sobre o jogo de hoje, que o Vasco não tem medo de parecer desrespeitoso, e que tem como meta se classificar no primeiro jogo, quando este é o discurso exatamente oposto ao que disse o treinador Zé Ricardo, na entrevista coletiva.

E quiseram os deuses da Bola, então, que no mesmo 14 de fevereiro da estreia no Sulamericano de 1948, contra o Litoral, primeiro campeão da história da Bolívia, o Vasco voltasse a jogar pela Libertadores, exatos setenta anos depois e, vejam vocês, de novo contra um time da Bolívia, no caso o Jorge Wilstermann, um tanto bipolar, porém perigosíssimo em seus domínios, na altitude que comparada à de La Paz ou Potosí, na boa, é pinto, a não ser pela bola zunindo da patada, do chute forte de longe que, dizem os entendidos, pro goleiro chega muito mais rápido, e difícil.

Mas hoje o jogo é em São Januário, e o desejo de toda a torcida é que o Vasco seja como o River Plate das quartas-de-final de 2017 e meta oito no Jorge, sem precisar levar de três na Bolívia, por favor. Que o Vasco não seja como o Atlético Mineiro, que ficou no zero a zero no Mineirão nas oitavas do ano passado e tornou-se assim o primeiro time brasileiro a ser eliminado por um boliviano, o Jorge Wilstermann, detentor desta suprema glória e que hoje nos enfrenta, com a coincidência de ser, também, o único time de seu país contra o qual temos retrospecto negativo.

Um jogo apenas, uma derrota por 3 a 1 numa excursão em 1968 em que o Vasco venceu o Destroyers por um a zero e o Bolívar, por dois a um, e empatou com o The Strongest (2 x 2) e com o Aurora (1 x 1), o mesmo Aurora responsável por nossa segunda e última derrota para bolivianos, pelo mesmo placar de 3 x 1 revertido no mesmo São Januário de hoje com aquilo que o danado do Vasco já fez na vida, assim como o River Plate, que é meter oito num time boliviano dentro de casa, ainda que tenha, de novo, tomado três.

E se o chocolate das oitavas-de-final da Sulamericana de 2011 inspira desejos maiores pra hoje, o placar da primeira vitória no Sulamericano de 48, 2 a 1 com sofrimento no fim, pressão do Litoral da Bolívia, paira na eternidade como um alerta perene de que sempre, em qualquer jogo, pode ser que não role goleada, pode ser que Alex Pirulito esteja em seus dias junto com todo o time, como estiveram todos no Mineirão contra Fred, Robinho e aí, nesse caso, a vitória apertada por 2 a 1 será muito, mas muito melhor que o 0 a 0, isso dito por quem ouviu premonições terríveis descendo os degraus da arquibancada de São Januário em agosto de 1998, depois do 2 a 0 sobre o Barcelona de Guaiaquil, e que ouvira antes, na semifinal, no mesmo lugar e hora, ouvira mais de cinco, seis torcedores prevendo eliminação certa depois da magra vitória de 1 a 0 sobre o River Plate, gol de Donizete Pantera.

Calma e faca no dente, juntos, entremeados, é só o que pede o blog aos deuses da Bola, ao técnico e aos jogadores, mesmo que seja absolutamente impossível o título do Vasco na Libertadores de 2018, impossível com certeza absoluta, disse o jornalista flamenguista no programa ao vivo na tevê, enquanto tentava defender mais uma edição indefensável do jornal da empresa para a qual trabalha, mais uma edição nítida e ridiculamente contra o Vasco.

Grande mídia como todos os seus colegas, torcedor do segundo clube mais querido da flapress, o apresentador do programa em questão tem o mérito de cutucar de vez em quando a parcialidade estrepitosa que certos jornalistas, com cara de paisagem, fingem não perceber, e cutucava mais uma vez, ao vivo, criticando abertamente a edição do jornal O Globo que mostrava a classificação protocolar do Vasco à terceira fase da Libertadores, no mesmo dia, ai, meus deuses da Bola, no mesmo dia do embarque da delegação vascaína para o Chile, setenta anos depois.

Um de Paulinho, outro de Pikachu, 12 mil pessoas em festa constante na arquibancada e na social de São Januário e o jornal relatou tudo isso, sim, mas num quarto de página, embaixo, no pé, porque em cima, nos outros três quartos da página principal da editoria, vinha a incrível história de Valdiram, grande furo jornalístico, de fato, baita relato, que pela própria exclusividade poderia ser publicado em qualquer dia, antes ou depois daquele escolhido, no qual, por uma dessas extraordinárias coincidências editoriais, ofuscou a festa da torcida, o domínio absoluto e a classificação do Vasco.

Hoje, o Globo mudou de tática e abre o fotão de Paulinho carregando Pikachu, como a imagem que abre este texto, os dois comemorando o sexto gol marcado pelo Vasco na fase anterior, numa imagem de confiança a combinar perfeitamente com o texto que parece feito sob encomenda do treinador do time boliviano, daqueles perfeitos pra pregar no vestiário antes do jogo.

“Sem medo de parecer desrespeitoso com o Jorge Wilstermann (...), o Vasco reconhece que a meta é encaminhar a classificação logo neste primeiro jogo, hoje, às 21h45, em São Januário”. Sem que ninguém, nem jogador, nem dirigente, nem treinador, nem massagista, nem médico nem torcedor do Vasco tenha falado isso ao jornal, o Globo afirma porque quer, na primeira frase do texto sobre o jogo de hoje, que o Vasco não tem medo de parecer desrespeitoso, e que tem como meta se classificar no primeiro jogo, quando este é o discurso exatamente oposto ao que disse o treinador Zé Ricardo, na entrevista coletiva.

Quem sabe não ajuda, quem sabe o treinador adversário não consiga mesmo motivar seus jogadores ainda mais diante do Vasco superconfiante e desrespeitoso, e sem medo de ser desrespeitoso, exposto pelo jornalismo apaixonado, baseado não em apuração, nem em entrevistas nem nos fatos, mas na vontade do jornal O Globo, que torce hoje e continuará torcendo, na próxima quarta-feira, pra não ter que falar mais do Vasco na Libertadores, pra não ser obrigado a procurar novos Valdirans pra ofuscar futuras vitórias, possíveis novas conquistas.

E pra terminar, não poderia haver dia melhor pra começar a republicar, aqui, a série de reportagens sobre o Sulamericano de 1948 feita pelo Hélio Fernandes pra revista O Cruzeiro, publicada no aniversário de 65 anos da conquista, em outro blog pessoal.


Segue abaixo....

Jornalismo Literário

Há exatos sessenta e cinco anos, o Vasco fazia sua estreia no primeiro campeonato continental interclubes da história do futebol, vencendo o Litoral, da Bolívia, por 2 a 1, com dois gols de Lelé. O torneio foi promovido pelo Colo Colo, do Chile, e viria a inspirar não só a criação da Taça Libertadores da América, doze anos depois, como da Copa dos Campeões da Europa, hoje a multiglobalizada Champions League. Disputado ao pé da Cordilheira dos Andes, num Estádio Nacional de Santiago sempre abarrotado de gente (pelo menos é o que mostram as fotos da época), o Campeonato Sul-Americano de Clubes Campeões de 1948 foi reconhecido oficialmente em 1996 pela Conmebol. Além disso, inspirou uma série de quatro reportagens da revista O Cruzeiro, assinadas pelo mesmo Helio Fernandes da Tribuna de Imprensa, que deve ter se divertido um bocado durante um mês na capital chilena, cobrindo o campeonato junto com jornalistas de todo o continente e também da Europa, como Jacques Ferran, enviado especial do jornal francês L'Equipe.
Hélio Fernandes se divertiu, sem dúvida, e deixou um registro histórico de uma dessas conquistas que só o Vasco tem. Fez isso com um estilo que até se vê hoje em dia em jornais e revistas, mas sem a menor elegância; e como além de vascaíno de coração o Relatos é, também, fã desse estilo, não o de hoje, mas o de antigamente, onde a opinião era exposta, sim, mas com informação suficiente para abalizá-la, e com a fundamental ajuda do uso correto, preciso, do humor e da ironia, que nos dias atuais vêm sendo diuturnamente confundidos, o tempo todo, com grosseria e sensacionalismo, pedimos licença para reproduzir aqui, com a ajuda da Netvasco, que publicou essas matérias há uns anos, três das quatro reportagens, três porque a última contém apenas singelos agradecimentos do jornalista a quem o ajudou nos trinta dias flanando por Santiago. Quer dizer, contém agradecimentos e pelo menos uma informação relevante, a de que o presidente do Vasco na época, Cyro Aranha, recusou cachês maiores para amistosos em outras paragens e insistiu para que o Expresso da Vitória disputasse o Sul-Americano. Sujeito de visão.
Abaixo, a terceira das quatro matérias de Hélio Fernandes
Revista O Cruzeiro, edição 26, de 17 de abril de 1948
"Chegou a ponto de marcar impedimento de Chico depois do ponta vascaíno ter driblado os dois zagueiros. É preciso contar mais alguma coisa?"
Hélio Fernandes

Sete foram os juízes que atuaram no Torneio dos Campeões, sem contar naturalmente o quase desconhecido uruguaio Fernandes, que estreou precisamente no último jogo, depois de decidido o campeonato. 
Três chilenos, White, Lesson e Madrid. Um certo Sr. Paredes da Bolívia. Valentine do Uruguai. Fortes da Argentina e Malcher do Brasil. Cada um deles levou para Santiago, ao lado de excessivo ardor patriótico, manias e regras diferentes, interpretações as mais absurdas do regulamento internacional, transformando a pacata cidade chilena numa edição de bolso da famosa Torre de Babel.White é a mais completa vocação de guarda-noturno que conhecemos. Mete o apito na boca e só fica satisfeito quando escuta o som estridente que seu próprio sopro arranca do aparelho inanimado. Narciso de nova espécie, entra em campo munido de pente, escova de unhas, leite de rosas para a pele, tesourinha para o bigode, esperando-se a cada momento que puxe de um dos bolsos o espelhinho que há de reproduzir a própria imagem, proporcionando-lhe uma satisfação inigualável.Lesson, possuidor de milhões de pesos e de fazendas quilométricas, talvez deslumbrado com a vastidão da própria fortuna, não teve tempo de aprender regulamentos. Autodidata em matéria de arbitragens, criou regras particulares que aplica em espetáculos públicos, criando com isso enormes complicações.Madrid é o melhorzinho dos três, havendo até quem assegure que sabe ler e escrever. Até lá não chegamos nós. Começou mal, e para melhorar precisou de um delicado estímulo de Diogo Rangel, que disse-lhe ao ouvido: a sua formidável cara de cachorro não está agradando aos brasileiros.O Sr. Paredes, boliviano de nascimento e chileno por merecimento,  foi o mais estranho dos juízes que apareceram em Santiago. Desconhecido até de alguns membros da própria delegação, andou mendigando por muito tempo uma arbitragem, porque, chorava ele, “não posso voltar para a minha terra sem ter atuado pelo menos uma vez.” Rondava Diogo. Rondava Simon do Uruguai. Cercava Marin por todos os lados. Até que acabou premiado. Escolhido para atuar em Vasco x Colo Colo, foi visto no sábado antes do jogo em doce e idílico colóquio com o presidente do clube local, colóquio que durou algumas horas. Entremeado de instante a instante por abraços amistosos, risinhos e segredinhos ao ouvido. 

E que acertaram seus relógios nesse encontro noturno, basta ler a crônica dos próprios jornais chilenos, que afirmaram – Revista Hercília, La Nacion e Diário Ilustrado – que errar como o Sr. Paredes errou, só deliberadamente, de espírito preconcebido. Por uma coincidência espantosa, o Sr. Paredes errou durante  90 minutos, sempre contra o mesmo clube. Os ataques do Vasco eram paralisados à entrada da área, de qualquer maneira e sob qualquer pretexto. O Sr. Paredes primeiro apitava. Depois escolhia a punição. Chegou a ponto de marcar impedimento de Chico depois do ponta vascaíno ter driblado os dois zagueiros. É preciso contar mais alguma coisa?

O Sr. Fortes, muito conhecido de outras épocas, não teve oportunidade de exibir suas habilidades, atuando uma única vez, assim mesmo num jogo sem importância.

Ao Sr. Valentine, já por duas vezes – 1945 e 46 – protagonista em dramas dos quais nosso país também participava, coube o mesmo papel desta vez. Por eliminação, ficou como único candidato a dirigir Vasco x River Plate, o que efetivamente veio a suceder. Dias antes do jogo, garantiu a Diogo na presença de jornalistas que seu maior desejo era reabilitar-se dos fracassos dos anos anteriores, e que, disposto a encerrar sua carreira de juiz, muito satisfeito ficaria se isso acontecesse com uma vitória do Brasil.
E realmente fez nesse jogo sua maior arbitragem. Calmo, sereno, acompanhando bem as jogadas e marcando com precisão, foi de uma imparcialidade a toda prova. E mesmo no famoso gol de Chico, nenhuma acusação mais séria lhe pode ser feita. Errou sem dúvida nenhuma ao assinalar impedimento de Chico. Mas o fato passaria apenas como um erro, perfeitamente desculpável, se para infelicidade sua, concluindo ilegalmente a jogada – depois do claro e indiscutível apito – Chico não aninhasse a bola nas redes argentinas.Descontrolando-se em face da atitude da torcida que queria o gol, e deixando-se levar pelo delírio dos jogadores vascaínos, tentou reformar a própria decisão, apontando timidamente para o centro do gramado. Mas o apito fora estridente demais, e os argentinos não se conformaram, passando a exigir, aos gritos e mesmo a socos, a cobrança do impedimento. Reagindo nobremente contra a fraqueza momentânea, o Sr. Valentine mandou bater o impedimento, conseguindo com essa decisão, mantida a despeito de tremenda vaia, levar o jogo até o final.
Finalmente, ao brasileiro Malcher, o último a estrear, coube a missão mais perigosa e delicada: contrariar os desígnios comercias do antiesportivo Robinson Álvares Marin.Malcher deveria estrear dirigindo River x Nacional. Mas como os gênios da delegação acharam que o jogo era importante demais, resolveram que Malcher adoecesse, apesar dos protestos do rapaz que, realmente corajoso e confiante nas próprias qualidades, queria apitar de qualquer maneira. Não conseguiu. Foi então indicado para Colo Colo X Nacional. Mas no intervalo excursionou a Concepcion com o quadro uruguaio, onde foi pivô de incidentes desagradáveis, apenas porque não quis atuar de acordo com a toada muito em voga no país andino: favorecer sempre o time da casa, qualquer que seja o adversário.
Com essa demonstração de energia e desassombro do árbitro brasileiro, assustou-se Robinson Marin, que na primeira reunião propôs a sua troca por Fortes, argumentando que “o público talvez não compreendesse a indicação de um juiz que já havia provocado incidentes em um jogo amistoso”. Mas como o delegado uruguaio manteve-se intransigente, não houve outra saída e Malcher foi mesmo indicado.Mas que ele seria sacrificado aos interesses inconfessáveis do presidente do Colo Colo, ninguém tinha dúvidas. Iniciado o jogo, viu-se que o ambiente estava bastante carregado contra Malcher e que tanto o técnico como os jogadores do Colo Colo estavam industriados para jogá-lo contra a multidão. Os bandeirinhas também tomaram parte na comédia, visando apenas criar confusão.Sentado ao lado do pavilhão do Vasco, Robinson Marin era quem mais torcia. A cada marcação ordenada contra o Colo Colo, ele levantava-se e, virado para as tribunas, exclamava dramaticamente:  “com esse juiz é impossível ganhar”.No lance que provocou a primeira interrupção, lance perfeitamente justo com um gol licitamente conquistado. Marin aproximou-se do bolo formado em volta do juiz e, em vez de acalmar os que desejavam linchá-lo, incitou-os com essa frase, que é um primor de indecência e falta de esportividade:  “este juiz é um ladrão e está vendido ao Nacional”. Daí em diante valeu tudo. 

Finalmente, quando os locais exigiam a marcação de um pênalti que não existiu, Malcher muito justamente suspendeu a partida, recusando-se a continuar por falta de garantias. Era a única decisão a tomar e ele só merece aplausos por isso. Começaram então as maquinações de bastidores, quando os dirigentes chilenos, na quase unanimidade, puseram as cartas na mesa e mostraram seu jogo escuso.  O Sr. Afonséa, presidente da Divisão de Honor, fez um comício contra Malcher declarando- o único culpado pelos acontecimentos. O chefe dos carabineiros, um senhor com muitos galões e pouca compostura, depois de conversar em segredo com Marin, transmitiu a Malcher a notícia definitiva: se não continuasse, não haveria garantias.Diante disso, depois de confabular com os chefes da delegação e ouvir-lhe os conselhos, Malcher resolver voltar a campo e dar prosseguimento ao jogo. Mas o ambiente estava tão impregnado de terror, que o bispo de Santiago, presidente da Universidade Católica, presente ao vestiário, declarou-lhe:  “Que Deus o proteja, meu filho. Só Ele o salvará.” 
E realmente os dois gols que o Colo Colo conquistou em cinco minutos, perfeitamente lícitos, têm sabor de milagre, e só à influência divina podem ser atribuídos. Eles deram ao clube local a tão desejada vitória, e mais do que isso, evitaram uma catástrofe que já se desenhava nitidamente, e que na certa se consumaria se o Colo Colo tivesse perdido.Mas de todos os incidentes quem saiu engrandecido, definitivamente glorificado, foi Malcher. Ele demonstrou uma honestidade a toda prova, uma energia fabulosa e uma coragem inescedível, além de um conhecimento precioso das regras internacionais e da maneira de aplicá-las. Ele foi o melhor juiz do campeonato. Disso ninguém tem dúvida.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Reencontro glorioso, atenção redobrada

Foto: Vasco

Quatro a zero fora de casa, com mão de argentino, e a mídia toda teve de mudar os prognósticos em relação ao respeitável Universidad de Concepción, que deixou de fora o Union Española, vice-campeão de 1975, e a outra Universidad mais conhecida, a Católica, também vice, em 1993, e que só do mais querido da mídia já ganhou quatro ou cinco vezes em Libertadores, lá e aqui. Isso sem falar em outro vice chileno, sumido, o Cobreloa, protagonista, em 1981, daquela que ficou conhecida em toda América, das matas amazônicas do Brasil, do Peru, da Venezuela e da Colômbia aos extremos gelados da Argentina e do Chile, como “la gran final de los chicos”.

Então Lelé, autor dos dois gols da vitória da estreia no Sulamericano, 2 a 1 no Litoral da Bolívia, a sete dias de completar 70 anos, então Lelé encarnou em Evander, Andrés Rios trombou como Ismael, com o requinte do drible de letra, Danilo guiou o passe de Wellington para que Paulinho honrasse Chico, Friaça e Ademir com o calcanhar que deixou ela à feição pra Evander Lelé chegar varado, batendo de primeira, de chapa, na costura da rede, tudo isso aos dois minutos de jogo, no mesmo Chile do ano da graça de 1948. Então, contra todos os prognósticos dos especialistas, o Vasco voltava à Libertadores enfiando 4 a 0 fora de casa, como quem diz aquilo que, com o perdão da sonoridade insuperável da língua espanhola, graças à cultura massificada da qual ninguém é imune, fica melhor em inglês: I’m back.

Augusto, Wilson e Rafagnelli se postaram junto a Erazo e a Ricardo, e quando se abriram as brechas do desentrosamento natural, ainda, entre os zagueiros, Barbosa abençoou Martin Silva. Eli fez Pikachu igualá-lo em tamanho em disputas com adversários bem maiores, assustando até o goleiro quarentão dos caras, que caiu estatelado pra entregar o terceiro gol ao nosso lateral. Jorge iluminou Henrique e RibeRildo justificou o melhor dos apelidos bobos, globalizados, fazendo o que deveria ter feito Diego Souza, outro grande craque vascaíno que um dia voltará.

Quatro a zero fora de casa, com mão de argentino, e a mídia toda teve de mudar os prognósticos em relação ao respeitável Universidad de Concepción, que deixou de fora o Union Española, vice-campeão de 1975, e a outra Universidad mais conhecida, a Católica, também vice, em 1993, e que só do mais querido da mídia já ganhou quatro ou cinco vezes em Libertadores, lá e aqui. Isso sem falar em outro vice chileno, sumido, o Cobreloa, protagonista, em 1981, daquela que ficou conhecida em toda América, das matas amazônicas do Brasil, do Peru, da Venezuela e da Colômbia aos extremos gelados da Argentina e do Chile, como “la gran final de los chicos”.

Antes imbatível em seus domínios de acordo com quase todas as previsões, pelo menos contra o Vasco, a Universidad de Concepción passou a time chinfrim, ridículo, o pior já visto por alguns dos especialistas, que também faziam questão de maximizar a influência da arbitragem na vitória vascaína na mesma medida em que minimizam benefícios muito mais escancarados ao seu time predileto.

Num site, o colunista exaltou Evander, mas logo revelou seus motivos políticos. O pai de Evander é dono do Centro de Treinamento onde o Vasco fez a pré-temporada este ano, e o colunista, matreiro, pergunta se não é inconcebível, estranho ou coisa parecida o pai do Evander ter um CT e o Vasco, não. No programa ao vivo na tevê, o apresentador repercute a pergunta sem citar a fonte e os dois, tanto o colunista do site quanto o apresentador da televisão, como integrantes do exército de formadores da mesma opinião, única, da mídia, os dois apoiam incondicionalmente a volta do grupo político que logo que assumiu o comando do Vasco, pelas mãos da imprensa e da justiça, deixou que o clube perdesse, por falta de pagamento, o CT Vasco Barra, com tudo necessário a um centro de treinamento, bem localizado, que na gestão de Calçada e Eurico o Vasco tinha tomado do queridinho deles, especialistas.

Houve também quem falasse em rebaixamento, sim, isso mesmo. Tal vitória poderia mascarar muita coisa, essa era a teoria, e o Vasco poderia vivenciar a tragédia de ir avançando na Libertadores, imagina, claro que sem a mais ínfima possibilidade de título, não nem pensar, “e a gente tem que saber que tem um brasileiro pela frente, onde haverá sempre o risco de rebaixamento”, disse o cidadão, cujos óculos realçavam o ar inteligente com o qual bambaleava sua argumentação.

Para a mídia não importa o time, a camisa, a torcida, nada, em todo ano haverá risco de rebaixamento para o Vasco, mas nessa fase da Libertadores, contra a Universidad Concepción, todos concordam, sem muita alternativa, que o time já está classificado. O jogo de hoje em São Januário é fava contada e é aí que mora o perigo, até porque houve uma vez uma Libertadores, há dez anos exatos, em que um certo time aqui do Rio também enfiou quatro no adversário estrangeiro no primeiro jogo fora de casa, e na volta foi aquela surpresa diante do craque de sangue índio, paraguaio, do time que, como nosso rival de hoje, também tinha camisa amarela.

Atenção redobrada, portanto, no retorno da Libertadores a São Januário, palco de uma das finais de 1998, contra outro time de camisa amarela. Atenção redobrada hoje e na nossa quase certa viagem à Bolívia, e também até lá e depois, porque mesmo com o time seguindo adiante contra todos os prognósticos, toda a torcida contra dos especialistas obrigados a amargar essa vitória definidora do Vasco no Chile, digerindo ainda até hoje a eliminação do supermegatime estrelado do queridinho com zero ponto fora de casa no ano passado, em qualquer circunstância a mídia estará sempre insuflando a guerra interna no Vasco, com a ajuda inestimável da justiça disposta a tumultuar como pode o ambiente no clube, com decisões sempre favoráveis ao candidato que ninguém diz quem é, e que na entrevista coletiva na qual revelou o quanto é despreparado reclamou abertamente das renovações de contrato de Evander e Paulinho, que, segundo ele, dificultariam negociações futuras.

Diretas Já? Pra botar esse desconhecido no comando do Vasco? Não agora, obrigado. Quem sabe daqui a três anos, com respeito aos sócios votantes e beneméritos e sem nenhum magistrado milionário, com o bolso abarrotado de auxílio-moradia, intervindo no clube pra fazer a vontade da mídia. Que tumultuem outro clube, tipo o Corinthians, de tantas brigas na recente eleição, ou o Flamengo, do vice-presidente preso por suspeita de lavagem de dinheiro, porque no Vasco deve continuar firme, forte, o lema primordial bradado na semana passada.


Liberta Já!

P.S. Não teve o condor de 1948 na camisa, sugerido pelo blog. Tava lá na manga o scudetto da Libertadores com o número 1, de 98, sem qualquer referência nem no peito nem no braço, ao título mais importante da história do clube. O Vasco perde mais uma oportunidade de valorizar o que é só dele. Uma pena. Quem sabe agora nos 80 anos do título, se o time estiver na Libertadores lá, se a estreia for no Chile. Ou então se passarmos pra fase de grupo, no encerramento dela, quando provavelmente jogaremos no mesmo Estádio nacional de Santiago na última rodada...  

O Vasco, a imprensa e um blog no meio

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