sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

O sonho interrompido do especialista


Foto: Carlos Gregório Jr./Vasco

E quando acordou, no dia seguinte o especialista já estava pronto pra continuar a falar mal do Vasco, ele e os outros que logo lançaram a notícia do talvez, quem sabe, do coelhinho felpudo que falou pra raposa matreira e pra dois passarinhos que contaram a um especialista qualquer, tudo em off, sobre a possibilidade, sim, de Martín Silva sair do Vasco, a qualquer momento.

O especialista lá no fundo guardava uma esperança. Ao vivo, repetindo seus comentários com o viés de sempre na tevê, secava como manda o manual, sem medo de errar, querendo, na verdade, ter a boca calada ao afirmar que a fatura já estava liquidada, que de 4 a 0 ninguém virava. Tinha ainda entalado outro 4 a 0, há nem bem três semanas quando, antes do jogo, ao ser questionado sobre seus prognósticos, apostou na vitória por 1 a 0 ou 2 a 1 do nobilíssimo Universidad de Concepción. Depois teve mais uma goleada, com gol levando soco na cara, e o especialista não estava mais tão confiante assim no digníssimo Jorge Wilstermann, quando se postou na frente da televisão mantendo, no entanto, aquele fiapo de esperança que, lá no fundo, ainda guardava.

E veio o primeiro gol, o segundo a tevê nem teve tempo de mostrar e aos sete minutos o jogo já estava 2 a 0 para o grande Jorge, único time boliviano a eliminar um brasileiro na história, no caso o glorioso Galo mineiro, de Fred e Robinho, segurando o 0 a 0 no Mineirão. O Jorge Wilstermann de Cochabamba, a 2,5 mil metros de altitude, que jogava a 300 metros acima disso, em Sucre, e naquele momento ganhava a torcida entusiasmada do especialista e de três ou quatro colegas que com ele entrariam ao vivo, para mais um programa de debate futebolístico, assim que o jogo terminasse.

Nem o especialista nem os colegas dele notaram que o escanteio do primeiro gol era pra ter sido tiro de meta, o que eliminaria não só o primeiro como o segundo gol, conquistado na saída da bola que deveria estar na quina da pequena área, se a regra fosse aplicada corretamente, e não no meio-campo, de onde ela foi roubada pra iniciar o contra-ataque e inflamar a torcida dos especialistas, que virou paixão rasgada, desenfreada, quando o Jorge, o Jorjão da Bolívia, fez o terceiro gol com menos de vinte minutos de jogo.

O especialista primeiro previu o rebaixamento, como todo ano. Depois, a muito custo, diante da tabela na reta final da competição aceitou cogitar a classificação pra Libertadores, mas só se houvesse G9, só se o queridinho dele, maior vice de copas secundárias da América, fizesse o que nunca fez em mais de cento e vinte anos, que é vencer uma final de taça continental contra um grande time estrangeiro. Com a garantia da sétima colocação em caso de vitória simples na última rodada, em casa, sobre a rebaixada Ponte Preta, o especialista admitiu a Pré-Libertadores, nunca se esquecendo do pré antes do nome da sagrada taça e ressaltando que o time era muito limitado, reclamando também do excesso de vagas banalizando a Copa, o que não tinha feito no ano anterior, quando o número de vagas para brasileiros era o mesmo.

Passada a Universidad de Concepción, que depois de ter a confiança do especialista pra prever vitória de 1 a 0 ou 2 a 1 virou, segundo ele, a maior baba do futebol chileno, veio o Jorge no caminho e a confiança foi renovada, e se mantinha alta mesmo com 2 a 0 contra no jogo de ida, porque o time boliviano se mostrava consistente, firme, só tinha levado gol de pura raça, de Paulão, estourando com Alex Pirulito no carrinho, e de Paulinho, metendo a cabeça na bola e no murro do goleiro.

Dois a zero dava pra virar, e se rolasse um golzinho, então, aí estava tudo garantido, pensava o especialista aos 41 do segundo tempo, quando Pikachu soltou a bomba desgovernada que estourou em Riascos e ficou dominada, meio que embaralhada, pelo colombiano. Riascos rolou pra trás, Pikachu soltou a bomba dessa vez muy bem endereçada e a confiança do especialista foi abalada de vez com o quarto gol, de Rildo, no último minuto, em impedimento, compensando o pênalti escancarado não marcado em Riascos quando o jogo estava 2 a 0.

O quarto gol do Vasco no último minuto em São Januário e na Bolívia, aos 18 do primeiro tempo, já estava 3 a 0. Vai, Jorge! O especialista incentivava de brincadeira junto com os outros que, talvez não tão empolgados, torciam da mesma forma não filmados àquela hora, claro, incentivavam o Jorge e calculavam, se lembravam, definiam juntos que estavam todos diante de algo que, se fosse confirmado, seria muito maior que qualquer Defensor, qualquer Palestino, León ou América do México, maior que qualquer Tolima ou Guarani paraguaio.

O especialista quase pulou da cadeira quando Paulão quase marcou contra, prendeu a respiração no chute de longe de Evander, defendido pelo goleiro, e começou a ficar apreensivo vendo o placar estancar até o fim do primeiro tempo e toda a metade do segundo, mesmo com Alex Pirulito entrando completamente impedido sem nada ser marcado nem notado pelos especialistas, mesmo com inversões de faltas, laterais, tiros de meta e escanteios sempre para o mesmo lado.

Sete a um não dava mais, pensava o especialista, ainda esperançoso porque cinco, dava, mais dois gols e tudo estaria consumado, e quando Zenteno, el gordo, completou o cruzamento oriundo da falta inexistente e fez o quarto gol de cabeça, impedido, os quatro, cinco especialistas não quiseram nem saber do bandeirinha, de tira-teima, nada. Pularam dos sofás e poltronas, todos, bateram as mãos espalmadas, eufóricos pela confirmação do sonho, pra entrarem logo ao vivo falando daquilo que não teria nem comparação com eliminações em casa, diante do Barcelona de Guaiaquil, maior campeão do Equador, finalista da Liberta duas vezes, em 90 e no ano da graça de 1998, de algo que superaria, sem sombra de dúvida, qualquer Defensa y Justicia ou Nacional paraguaio, qualquer das goleadas da LDU ou gol do Emelec.

O especialista xingou sinceramente Alex Pirulito, que agarrou e empurrou Riascos sem nada ser marcado e teve seu chute de dentro da pequena área desviado pelos deuses da Bola, por cima do travessão. O especialista roía as unhas, suava, ansiava e mantinha a esperança porque poderia ter sido pior, se o juiz tivesse marcado o pênalti claro em Rildo. A decisão por pênaltis, antes do jogo, era um sonho inimaginável, por isso o especialista manteve a confiança mesmo com Ríos marcando com calma, mas previu o pior na primeira defesa de Martín Silva, na primeira cobrança do Jorge Wilstermann, naquele que desde a final da última Copa do Brasil, também nos pênaltis, ficou conhecido como o canto do Muralha.

Pikachu meteu no ângulo, e a esperança do especialista só não foi por água abaixo, durante a chuva torrencial no Rio de Janeiro, porque o Jorge converteu sua segunda cobrança e, logo em seguida, Desábato mandou na trave. Iria acontecer, claro que iria, não tinha acontecido o 4 a 0 por acaso, acreditava o especialista quando Martín Silva fez sua segunda defesa, evitando o empate, no mesmo canto do Muralha. Com Wellington foi outro grito engasgado, bola na trave de novo, só que entrando, e o especialista só não deixou de acreditar ali porque o Wilster acertou o segundo.

E quando Rildo, com a chance de acabar com tudo aquilo, jogou fraco, nas mãos do goleiro dois passos adiantado, o especialista voltou a ter certeza. Sim, aconteceria aquilo que seria incomparável, infinitamente maior que uma lanterna de grupo, quarta colocação de quadrangular e eliminação com duas rodadas de antecedência, tomando que tomando do Olimpia, do Once Caldas e da Universidad Católica, algo superior a sair da Libertadores num grupo de quatro, quando três se classificavam, ou ser alijado na fase de grupos, jogando como o campeão do torneio. O especialista sonhava, queria logo a carta eterna na manga pra lançar sempre que necessário, sem precisar falar nunca mais dos micos extraordinários do time dele em competições porque haveria um maior ainda, e do outro time, do eterno vilão campeão sulamericano antes mesmo da existência da Libertadores, e campeão também da própria Liberta, exatamente na semana do Centenário, sem escândalo de arbitragem e eliminando times grandes no caminho.

Então Pirulito bateu no outro canto, não o do Muralha, e Martín Silva fez sua terceira defesa em cinco cobranças, ele que nunca, em quatro anos de time, se destacou muito como pegador de pênaltis. E minutos depois, o âncora abriu o programa dizendo que os três, quatro, cinco debatedores ali poderiam estar falando do maior vexame da história do futebol brasileiro na história da Libertadores. Só que não.

E ao comentar o jogo, o especialista não conseguia esconder a carranca de quem tinha chegado muito perto de ver o sonho realizado. Ridículo, vexatório, patético eram alguns dos adjetivos dirigidos ao time classificado, enquanto outro especialista falou em 7 a 1, e tudo por causa de um jogo na altitude, atípico, que de acordo com as regras do futebol deveria ter terminado 1 a 1, o que não tira a razão de quem prefere criticar o apagão do time.

O Evander parando e deixando de acompanhar El Gordo Zenteno no primeiro gol, o Ricardo perdendo disputas fundamentais de cabeça, o Thiago Galhardo sendo expulso daquela maneira no mínimo idiota, o que tornou tudo ainda mais dramático, o próprio Martín Silva podendo evitar e não evitando o primeiro e o quarto gols, a diretoria trocando as altitudes e usando a estratégia adequada à outra que não a de 2,8 mil metros onde foi o jogo, tudo isso deve ser visto, revisto e consertado, lógico, mas o blog aqui prefere, por ora, comemorar, porque 70 anos depois de darem a Barbosa o dom de fechar o gol contra o maior ataque da história do futebol argentino, os deuses da Bola botaram de novo um goleiro vascaíno na berlinda do futebol sulamericano.

E o especialista se lembrou do San Lorenzo em seu comentário sobre o Jorge x Vasco, a mais doída das cinco eliminações na fase de grupos do time dele, recordista brasileiro nesse quesito, pior até do que a do gol do Emelec (certamente a mais engraçada), porque foi a terceira seguida, quando ele e todos os outros especialistas consideravam o time de Muralha, Rafael Vaz, Rodinei, Pará e Márcio Araújo como superfavorito, a tudo.

Depois, programa terminado, o especialista foi pra casa dormir e sonhou com Pirulito acertando a bomba da pequena área, o 5 a 0 estampado nas manchetes e a caçoada eterna, tão vergonhosa que faria cair no esquecimento o América do México, o Léon, a LDU, o Tolima, o Once Caldas, a Universidad Católica, o Defensa e Justicia, o San Lorenzo, o Guarani e o Nacional paraguaios e o gol do Emelec, só que não. E quando acordou, no dia seguinte o especialista já estava pronto pra continuar a falar mal do Vasco, ele e os outros que logo lançaram a notícia do talvez, quem sabe, do coelhinho felpudo que falou pra raposa matreira e pra dois passarinhos que contaram a um especialista qualquer, tudo em off, sobre a possibilidade, sim, de Martín Silva sair do Vasco, a qualquer momento.

P.S. Se Zé Ricardo realmente se deixar seduzir pela grana, que a diretoria tenha a suprema inteligência de fazer de Valdir Bigode o novo técnico, é só o que o A pauta é Vasco deseja com relação a este assunto.

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