quinta-feira, 27 de junho de 2019

Homenagem obrigatória a um vascaíno



Se não tivesse o meme, a eterna sacanagem, a impaciência, a cobrança por perfeição desde muito cedo que hoje domina as torcidas de tantos times, não apenas do Vasco, se não houvesse a vaia, as ironias e xingamentos dirigidos a uma cria da base (isto, sim, um comportamento muito estranho, suicida, e que parece exclusivo de torcedor vascaíno), se a torcida apoiasse desde o início, muito acima das expectativas, o jovem revelado pelo seu clube do coração, nitidamente talentoso no ofício nada fácil de fazer gols, será que Thalles conseguiria ter outro destino?

O Vasco que adentrou ao gramado do Maracanã para o jogo de volta das quartas-de-final da Copa do Brasil de 2013, depois de perder para o Goiás na ida, por dois a um, tinha Fágner na lateral-direita, o peruano Yoshimar Yótun na esquerda e Juninho Pernambucano no meio-campo. Mas não tinha goleiro confiável e se tinha Luan na zaga, menino ainda, não tinha Rodrigo, futuro capitão. Com o auxílio incansável da diretoria da época, além do apito de sempre, o time chegou à partida decisiva contra o Goiás do gordinho Walter já na zona do rebaixamento do Brasileirão, precisando reverter a derrota no Serra Dourada e sem seu principal atacante, sim, Edmilson. Em seu lugar entraria um garoto da base, que faria, na decisão de um mata-mata nacional, no Maraca, sua estreia como profissional.

Pois aos dois minutos de jogo, Fágner recebeu na lateral da área, cortou o marcador pra dentro e cruzou de trivela, à meia-altura, a bola que quicou antes de ser dominada meio que na coxa e na barriga pro chute rápido, forte, seco do garoto que fazia sua estreia como profissional, no Maraca, marcando, no primeiro lance de sua carreira, o gol que revertia o placar do mata-mata. O tal garoto era Thalles e, menos de quinze minutos depois, ele recebeu em frente à meia-lua da grande área, dominou, virou e, com Juninho Pernambucano, só isso, pedindo a bola completamente livre à direita, pra entrar na cara do goleiro, com o maior ídolo da história recente do clube requisitando o passe pra fazer a porra do gol, o garoto que jogava pela primeira vez na vida como profissional, no Maraca, como quem decidisse que gol, afinal, era com ele, disse não, obrigado,ao Juninho Pernambucano, e dali mesmo, de chapa, de fora da área, resolveu a parada metendo a bola bem perto do ângulo, fora do alcance do goleiro. Dois a zero Vasco, aos dezesseis do primeiro tempo, com dois gols do garoto que fazia sua estreia como profissional, no Maraca, chamado Thalles.

O Vasco sairia vitorioso daquela partida, mas eliminado, graças também à anulação equivocada do gol legal de Luan, quando o jogo, que acabaria três a dois pra gente, estava dois a um. Thalles, que já era tratado como promessa da base, saiu daquele jogo como joia ainda mais valorizada, de futuro promissor, e talvez tenha sido aí, logo após a estreia fulminante, que tudo começou a desandar. Aos dezoito anos, Thalles passou a ganhar muito mais dinheiro, e passou a gastar com uma vida assim não tão regrada, e passou a ter problemas com a balança e nunca mais teve atuação tão arrebatadora quanto àquela de sua estreia, no Maraca. Mesmo assim, Thalles continuou a fazer seus gols pontuais e foi titular da Seleção Sub 20 no Sulamericano de 2015, tendo no banco, Gabigol.

Não há como negar a responsabilidade do próprio Thalles pelo destino trágico de seus vinte e quatro anos de vida, mas por aqui, neste recinto, fica a obrigação de lançar a dúvida, o debate sobre se tudo poderia ter sido diferente, ou não, se boa parte da torcida do Vasco, a mais barulhenta no estádio e na internet, não tivesse perdido, tão cedo, a paciência com Thalles. Em outros clubes, daqui e lá de fora, as torcidas tratam os garotos da base com todo o cuidado, aplaudindo sempre, vaiando jamais, mas no Vasco, por algum tipo de mistério, é diferente, e a torcida que já tinha vaiado Alan Kardec, que já começa a vaiar Marrony, passou a vaiar mais uma promessa de bom atacante, cria da base, e nas redes começaram a pipocar os memes com o excesso de peso do rapaz como tema favorito e o apelido em referência à Balotelli, de sacanagem: Balothalles.

Thalles foi campeão carioca de 2015 na reserva, quase sem atuar, e no ano seguinte, com Jorginho, Zinho e Valdir Bigode buzinando ao seu ouvido, falando, aconselhando, o centroavante perdeu peso e teve participação bem maior no bicampeonato, invicto, com gols importantes que garantiram também a Taça Guanabara. Os memes, no entanto, não pararam, e já no início da Série B de 2016, nem dois meses depois da festa do bicampeonato, Thalles voltou a, digamos assim, desconcentrar. Ganhou peso, parou de marcar e foi intensamente vaiado num jogo em São Januário no qual Ederson abriu o placar para o Vasco e o Criciúma empatou no finzinho do primeiro tempo.

Segundo tempo tenso, com a torcida vaiando o centroavante cria da base nem três anos depois da estreia avassaladora dele, no Maraca, e o empate permanecendo no placar até os 28 minutos do segundo tempo, quando o goleiro rebateu com a canela, errado, um cruzamento-balão da intermediária e a bola sobrou para o chute dele mesmo, Thalles, de primeira, sem tempo pra pensar, com o goleiro tocando de novo nela, mas sem evitar o gol da vitória, mais três pontos fundamentais para o acesso garantidos pelo artilheiro desencaminhado, vaiado, que na reta final da campanha, quando a permanência na segunda divisão virou real ameaça, foi simplesmente primordial, foi o cara.

Thalles fez o gol da vitória de 1 a 0 sobre o Paraná, marcou nos 2 a 1 sobre o Bragantino, aparou com perfeição o lançamento igualmente perfeito de Nenê e tocou pra rede tirando do goleiro no empate com a Luverdense em casa, 1 a 1, e na última rodada, com os nervos de toda a torcida aos frangalhos, voltando do intervalo com a derrota por 1 a 0 para o Ceará, o garoto que fez gol na primeira bola de sua carreira, aos dois minutos de jogo de um mata-mata nacional de quartas-de-final, no Maraca, no mesmo Maracanã marcou de novo aos dois minutos, só que do segundo tempo, e mais avassalador ainda que na primeira vez, dois minutos depois, aos quatro, marcou mais um, o gol do acesso, da virada e correu tirando a camisa diante da arquibancada que tremia em delírio, lotada, e se ajoelhou, deitou no gramado e chorou, cobrindo o rosto com as mãos, chorou também porque, como mostra a foto lá em cima, Thalles, desde criancinha, era Vasco.

“Thalles salvou o Vasco. Não fosse ele na reta final e o time não subiria”, ouviu-se dizer por aí, entre torcedores, mas nada de os memes, as sacanagens com o peso, cessarem, e Thalles entrou razoavelmente bem em 2017, marcando gols e animando aqui o próprio A pauta é Vasco, que desde o primeiro, e o segundo, texto publicado, não vindo pra cá de outro blog, defendia o faro de gol, a chance de futuro do rapaz que na campanha da classificação à Libertadores não jogou tanto quanto em 2016, mas deixou o dele no empate em 2 a 2 com o Coritiba no Couto Pereira, de cabeça, e após o empate do Vitória, também fora de casa, marcou o segundo da goleada de 4 a 1, seu último gol com a camisa do clube do coração, aliás, um golaço.

Não tão em boa forma quanto no bi carioca, Thalles recebeu bela enfiada de Guilherme e correndo com o zagueiro, chegou na bola por cima, correndo e trazendo ela de sola com a direita pra driblar o goleiro e, no segundo toque, com a esquerda, mandar pra rede sem dar tempo do mesmo zagueiro que corria com ele salvar no carrinho. Thalles voltou a tirar a camisa na comemoração, mas depois retomou a irregularidade que sempre marcou sua carreira. Em 2018 foi emprestado para um time da segunda divisão do Japão, voltou este ano e foi para a Ponte Preta, fez lá também seus gols pontuais, pelo menos um golaço, e lá ficaria até o fim deste ano, não fosse a batida entre duas motos às sete da manhã de um sábado, em São Gonçalo, terra natal do atacante que pilotava sua moto tendo na garupa, segundo testemunhas, duas mulheres, a namorada e uma amiga, os três voltando de um baile funk. O piloto da outra moto, que levava a namorada, morreu no local. A outra vítima fatal do acidente foi Thalles, que chegou a ser levado ao hospital, mas não resistiu. Ninguém estava usando capacete.

Só o fato de andar de moto já mostra certa irresponsabilidade de Thalles com o próprio corpo, seu instrumento de trabalho. Sem capacete, então, dá pra perceber que o atacante de talento, que sabia fazer gol de cabeça, de direita ou de esquerda, de primeira ou dominando e chutando, e que fez também um ou outro golaço de fora da área, ele que era forte, tinha corpo pra trombar com os zagueiros, mas também tinha bola, sabia driblar o goleiro, se fosse o caso, esse artilheiro desequilibrado, eternamente questionado, tem total e inquestionável responsabilidade pelo que aconteceu com ele, no acidente e ao longo de sua carreira, muito aquém, na maior parte do tempo, ao talento que claramente possuía. Por aqui, no entanto, ficará sempre a dúvida do que teria acontecido ao garoto, se algo poderia mudar, se o destino dele poderia ser outro se a torcida o abraçasse desde o começo simplesmente espetacular, gol no primeiro lance, no Maraca, em mata-mata de quartas-de-final de Copa do Brasil e depois, ignorando pedido-ordem do Juninho Pernambucano do Monumental, um golaço.

Se não tivesse o meme, a eterna sacanagem, a impaciência, a cobrança por perfeição desde muito cedo que hoje domina as torcidas de tantos times, não apenas do Vasco, se não houvesse a vaia, as ironias e xingamentos dirigidos a uma cria da base (isto, sim, um comportamento muito estranho, suicida, e que parece exclusivo de torcedor vascaíno), se a torcida apoiasse desde o início, muito acima das expectativas, o jovem revelado pelo seu clube do coração, nitidamente talentoso no ofício nada fácil de fazer gols, será que Thalles conseguiria ter outro destino?

Ou se pelo menos a torcida passasse a apoiar seu centroavante, no clube desde os 11 anos de idade, almoçando, jantando, dormindo embaixo da arquibancada de São Januário e salvando o Vasco na reta final da Série B de 2016, se a partir dali, pelo menos, o garoto passasse a receber muito mais incentivo, força, do que ironia e sacanagem daquela parte da torcida mais barulhenta, onde parece prevalecer a máxima adolescente de que se você resolver apoiar o cara, simplesmente porque ele é do teu time, se você não quiser fazer brincadeirinha com ele, piadinha, então você é bobo, otário ou coisa parecida, se fosse diferente com Thalles, pelo menos depois de ele ser fundamental, decisivo, para o clube voltar à primeira divisão, se a torcida o abraçasse como fazem as maiorias das torcidas com suas crias da base, se não o vaiasse preferindo Júnior Dutra ou Kelvin, será que Thalles, enfim, explodiria, iria para a Europa, jogaria a Champions League como Alex Teixeira, Souza, Allan Kardec, Allan, Philippe Coutinho e Paulinho? Vá saber, mas ainda assim, mesmo não tendo sido o grande artilheiro que se anunciava, mesmo com os memes sobre sua barriga, as sacanagens, Thalles foi o cara num jogo de suma importância no Maracanã lotado de vascaínos, fez gol na primeira bola que recebeu como profissional e foi campeão pelo time de coração, na maior série invicta já conquistada pelo clube. Não é tanto assim, mas é história. Por isso, além do lamento, da tristeza pelo desperdício de uma vida aos 24 anos de idade, fica aqui ao Thalles, de um vascaíno para outro, sinceramente, meu obrigado.

Pitacos em itálico

Pior é saber que tudo poderia ser evitado, mesmo com a ordem inconteste do executivo babaca, se no Vasco houvesse alguém pra chegar depois do jogo e puxar o Sidão, tirar logo ele de campo dizendo que o goleiro do clube não ia receber porra de prêmio babaca nenhum e foda-se qualquer decisão de algum riquinho escroto funcionário da grande emissora.

*Antes de mais nada, é preciso falar de Sidão, de mais essa canalhice sem tamanho de nossa grande mídia esportiva, em nome das piadinhas, das brincadeirinhas, da hostilidade antes de mais nada, antes do incentivo, antes do amor pelo clube, razão de ser da torcida. A moda é sacanear os caras e já faz tempo que é assim na internet, na maior parte das arquibancadas e sociais do país, mas com Sidão teve um algo a mais, foi diferente. Com ele a sacanagem começou na internet, como sempre, invadiu a transmissão e foi abalizada, oficializada pela Rede Globo de Televisão, dona do campeonato, por meio de algum executivo babaca que deu a ordem pra entregar sim, porra, caralho, o prêmio de melhor do jogo ao Sidão depois das falhas dele na derrota para o Santos no domingo do Dia das Mães, quando o goleiro atuou tendo, na camisa, o nome da mãe dele, falecida. Pior é saber que tudo poderia ser evitado, mesmo com a ordem inconteste do executivo babaca, se no Vasco houvesse alguém pra chegar depois do jogo e puxar o Sidão, tirar logo ele de campo dizendo que o goleiro do clube não ia receber porra de prêmio babaca nenhum e foda-se qualquer decisão de algum riquinho escroto funcionário da grande emissora. Em outros clubes, certamente, essa pessoa existe e isso não aconteceria. No Vasco, em outros tempos, essa pessoa também havia, mas hoje não há, e por isso, também, aconteceu esse episódio, em mais uma dessas incríveis coincidências, sempre contra o Vasco.

*E depois de Thiago Galhardo, de William Maranhão, Bruno Silva e Marcelo Mattos, foi embora nosso mais famoso atual ex-craque, o argentino Máxi Lopez, que chegou acima do peso, acima do peso virou o ano e assim continuou até se despedir, e não foi só isso que teve em comum com a trajetória de Thalles no clube, pois La Barbie, assim como nosso jovem falecido garoto da base, foi fundamental para manter o clube no lugar dele, não com um acesso, mas com a permanência na primeira divisão. Máxi Lopez jogou a final da Taça Guanabara, foi campeão com o time, deu volta olímpica e levantou a taça, mas sua principal contribuição na história do Vasco foram as atuações no Brasileiro de 2018, o gol e as assistências contra a Chape, o corta-luz no cruzamento do Fabricio pro Pikachu contra o Cruzeiro, o gol de centroavante forte pra caralho na mesma partida, dando o tranco legal no zagueiro e chapando a pelota, de canhota, no canto, o golaço contra o Botafogo no Nilton Santos e os pênaltis todos convertidos contra Inter, Fluminense, Paraná e América, e este ano contra a Juazeirense, o Flamengo, os dois no último minuto, e contra o Corinthians. Por isso, Máxi será lembrado, pela frieza glacial nos pênaltis decisivos, pela permanência na difícil temporada de 2018 e também pela elegância, de outro nível, de sua carta de despedida. Gracias, Hermano, estás aqui em la piedra tambíen, por supuesto que sí.

*Chegou o profexô e o time, vejam vocês, melhorô. Teve o castigo excessivo dos dois empates cedidos no último minuto, seguidos, contra Avaí em São Januário e Fortaleza no Castelão, e teve a derrota para o Botafogo, com Diego Souza matando no peito e deixando ela subir no tempo certinho pra soltar a bomba indefensável e fazer a gente matutar mais e mais, coçar a cabeça e perguntar por que cargas d’água o Vasco não trouxe o cara quando ele estava aí, dando sopa. Por causa do Bruno César? Do Yan Sasse? Ah, tá. Mas depois teve Andrey e Tiago Reis garantindo a primeira vitória, dois garotos de nossa base, o volante voltando a ter chance depois de desaparecer inexplicavelmente no início da temporada, após ser decisivo, também ele, na permanência no Brasileirão, com o golaço contra o Cruzeiro no Mineirão e, principalmente, com o chute colocado de fora da área que abriu o placar contra o São Paulo e acalmou tudo no Caldeirão lotado. Vanderlei Luxemburgo assumiu o comando da equipe e Andrey voltou a ter chance, e contra o Inter foi o volante, pegando meio na canela e de canhota, ele que é destro, quem abriu o placar, lá pelos 40 do primeiro tempo. Antes do apito final do primeiro tempo, Tiago Reis esperou o tempo certo da falta cobrada bem perto da perfeição por Danilo Barcellos, aguardou a bola bater na junção da trave com o travessão, quicar e sobrar pra cabeçada devagar, colocada, tranquila, que acabou sendo o gol da vitória por 2 a 1. 
E no jogo seguinte, contra o Ceará, São Januário estava lotado e a torcida empurrou o tempo todo, sem perder a paciência com o 0 a 0 no intervalo, sem deixar de incentivar até o córner batido por Pikachu encontrar a cabeça do colombiano Henriquez e bater na trave, depois nele mesmo, Diogo Silva, que até então fechava o gol, e sobrar pra cabeçada de Danilo Barcellos na pequena área. O time que ocupou a lanterna na maioria das primeiras rodadas, parou para a Copa América não só livre da última posição como fora, também, da zona de rebaixamento, e se São Januário continuar lotado na volta do campeonato, se a torcida continuar apoiando sem parar, sem sacanagem, sem vaia, sem meme, a coisa, com certeza, só tende a melhorar.

O Vasco, a imprensa e um blog no meio

Vassalo de nobrezas perdidas, a valorizar vitrais e troféus por bom comportamento, entregues por príncipes em nome da fidalguia, o Flum...