quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Muito respeito nessa hora

Foto: Getty Images

“Sem medo de parecer desrespeitoso com o Jorge Wilstermann (...), o Vasco reconhece que a meta é encaminhar a classificação logo neste primeiro jogo, hoje, às 21h45, em São Januário”. Sem que ninguém, nem jogador, nem dirigente, nem treinador, nem massagista, nem médico nem torcedor do Vasco tenha falado isso ao jornal, o Globo afirma porque quer, na primeira frase do texto sobre o jogo de hoje, que o Vasco não tem medo de parecer desrespeitoso, e que tem como meta se classificar no primeiro jogo, quando este é o discurso exatamente oposto ao que disse o treinador Zé Ricardo, na entrevista coletiva.

E quiseram os deuses da Bola, então, que no mesmo 14 de fevereiro da estreia no Sulamericano de 1948, contra o Litoral, primeiro campeão da história da Bolívia, o Vasco voltasse a jogar pela Libertadores, exatos setenta anos depois e, vejam vocês, de novo contra um time da Bolívia, no caso o Jorge Wilstermann, um tanto bipolar, porém perigosíssimo em seus domínios, na altitude que comparada à de La Paz ou Potosí, na boa, é pinto, a não ser pela bola zunindo da patada, do chute forte de longe que, dizem os entendidos, pro goleiro chega muito mais rápido, e difícil.

Mas hoje o jogo é em São Januário, e o desejo de toda a torcida é que o Vasco seja como o River Plate das quartas-de-final de 2017 e meta oito no Jorge, sem precisar levar de três na Bolívia, por favor. Que o Vasco não seja como o Atlético Mineiro, que ficou no zero a zero no Mineirão nas oitavas do ano passado e tornou-se assim o primeiro time brasileiro a ser eliminado por um boliviano, o Jorge Wilstermann, detentor desta suprema glória e que hoje nos enfrenta, com a coincidência de ser, também, o único time de seu país contra o qual temos retrospecto negativo.

Um jogo apenas, uma derrota por 3 a 1 numa excursão em 1968 em que o Vasco venceu o Destroyers por um a zero e o Bolívar, por dois a um, e empatou com o The Strongest (2 x 2) e com o Aurora (1 x 1), o mesmo Aurora responsável por nossa segunda e última derrota para bolivianos, pelo mesmo placar de 3 x 1 revertido no mesmo São Januário de hoje com aquilo que o danado do Vasco já fez na vida, assim como o River Plate, que é meter oito num time boliviano dentro de casa, ainda que tenha, de novo, tomado três.

E se o chocolate das oitavas-de-final da Sulamericana de 2011 inspira desejos maiores pra hoje, o placar da primeira vitória no Sulamericano de 48, 2 a 1 com sofrimento no fim, pressão do Litoral da Bolívia, paira na eternidade como um alerta perene de que sempre, em qualquer jogo, pode ser que não role goleada, pode ser que Alex Pirulito esteja em seus dias junto com todo o time, como estiveram todos no Mineirão contra Fred, Robinho e aí, nesse caso, a vitória apertada por 2 a 1 será muito, mas muito melhor que o 0 a 0, isso dito por quem ouviu premonições terríveis descendo os degraus da arquibancada de São Januário em agosto de 1998, depois do 2 a 0 sobre o Barcelona de Guaiaquil, e que ouvira antes, na semifinal, no mesmo lugar e hora, ouvira mais de cinco, seis torcedores prevendo eliminação certa depois da magra vitória de 1 a 0 sobre o River Plate, gol de Donizete Pantera.

Calma e faca no dente, juntos, entremeados, é só o que pede o blog aos deuses da Bola, ao técnico e aos jogadores, mesmo que seja absolutamente impossível o título do Vasco na Libertadores de 2018, impossível com certeza absoluta, disse o jornalista flamenguista no programa ao vivo na tevê, enquanto tentava defender mais uma edição indefensável do jornal da empresa para a qual trabalha, mais uma edição nítida e ridiculamente contra o Vasco.

Grande mídia como todos os seus colegas, torcedor do segundo clube mais querido da flapress, o apresentador do programa em questão tem o mérito de cutucar de vez em quando a parcialidade estrepitosa que certos jornalistas, com cara de paisagem, fingem não perceber, e cutucava mais uma vez, ao vivo, criticando abertamente a edição do jornal O Globo que mostrava a classificação protocolar do Vasco à terceira fase da Libertadores, no mesmo dia, ai, meus deuses da Bola, no mesmo dia do embarque da delegação vascaína para o Chile, setenta anos depois.

Um de Paulinho, outro de Pikachu, 12 mil pessoas em festa constante na arquibancada e na social de São Januário e o jornal relatou tudo isso, sim, mas num quarto de página, embaixo, no pé, porque em cima, nos outros três quartos da página principal da editoria, vinha a incrível história de Valdiram, grande furo jornalístico, de fato, baita relato, que pela própria exclusividade poderia ser publicado em qualquer dia, antes ou depois daquele escolhido, no qual, por uma dessas extraordinárias coincidências editoriais, ofuscou a festa da torcida, o domínio absoluto e a classificação do Vasco.

Hoje, o Globo mudou de tática e abre o fotão de Paulinho carregando Pikachu, como a imagem que abre este texto, os dois comemorando o sexto gol marcado pelo Vasco na fase anterior, numa imagem de confiança a combinar perfeitamente com o texto que parece feito sob encomenda do treinador do time boliviano, daqueles perfeitos pra pregar no vestiário antes do jogo.

“Sem medo de parecer desrespeitoso com o Jorge Wilstermann (...), o Vasco reconhece que a meta é encaminhar a classificação logo neste primeiro jogo, hoje, às 21h45, em São Januário”. Sem que ninguém, nem jogador, nem dirigente, nem treinador, nem massagista, nem médico nem torcedor do Vasco tenha falado isso ao jornal, o Globo afirma porque quer, na primeira frase do texto sobre o jogo de hoje, que o Vasco não tem medo de parecer desrespeitoso, e que tem como meta se classificar no primeiro jogo, quando este é o discurso exatamente oposto ao que disse o treinador Zé Ricardo, na entrevista coletiva.

Quem sabe não ajuda, quem sabe o treinador adversário não consiga mesmo motivar seus jogadores ainda mais diante do Vasco superconfiante e desrespeitoso, e sem medo de ser desrespeitoso, exposto pelo jornalismo apaixonado, baseado não em apuração, nem em entrevistas nem nos fatos, mas na vontade do jornal O Globo, que torce hoje e continuará torcendo, na próxima quarta-feira, pra não ter que falar mais do Vasco na Libertadores, pra não ser obrigado a procurar novos Valdirans pra ofuscar futuras vitórias, possíveis novas conquistas.

E pra terminar, não poderia haver dia melhor pra começar a republicar, aqui, a série de reportagens sobre o Sulamericano de 1948 feita pelo Hélio Fernandes pra revista O Cruzeiro, publicada no aniversário de 65 anos da conquista, em outro blog pessoal.


Segue abaixo....

Jornalismo Literário

Há exatos sessenta e cinco anos, o Vasco fazia sua estreia no primeiro campeonato continental interclubes da história do futebol, vencendo o Litoral, da Bolívia, por 2 a 1, com dois gols de Lelé. O torneio foi promovido pelo Colo Colo, do Chile, e viria a inspirar não só a criação da Taça Libertadores da América, doze anos depois, como da Copa dos Campeões da Europa, hoje a multiglobalizada Champions League. Disputado ao pé da Cordilheira dos Andes, num Estádio Nacional de Santiago sempre abarrotado de gente (pelo menos é o que mostram as fotos da época), o Campeonato Sul-Americano de Clubes Campeões de 1948 foi reconhecido oficialmente em 1996 pela Conmebol. Além disso, inspirou uma série de quatro reportagens da revista O Cruzeiro, assinadas pelo mesmo Helio Fernandes da Tribuna de Imprensa, que deve ter se divertido um bocado durante um mês na capital chilena, cobrindo o campeonato junto com jornalistas de todo o continente e também da Europa, como Jacques Ferran, enviado especial do jornal francês L'Equipe.
Hélio Fernandes se divertiu, sem dúvida, e deixou um registro histórico de uma dessas conquistas que só o Vasco tem. Fez isso com um estilo que até se vê hoje em dia em jornais e revistas, mas sem a menor elegância; e como além de vascaíno de coração o Relatos é, também, fã desse estilo, não o de hoje, mas o de antigamente, onde a opinião era exposta, sim, mas com informação suficiente para abalizá-la, e com a fundamental ajuda do uso correto, preciso, do humor e da ironia, que nos dias atuais vêm sendo diuturnamente confundidos, o tempo todo, com grosseria e sensacionalismo, pedimos licença para reproduzir aqui, com a ajuda da Netvasco, que publicou essas matérias há uns anos, três das quatro reportagens, três porque a última contém apenas singelos agradecimentos do jornalista a quem o ajudou nos trinta dias flanando por Santiago. Quer dizer, contém agradecimentos e pelo menos uma informação relevante, a de que o presidente do Vasco na época, Cyro Aranha, recusou cachês maiores para amistosos em outras paragens e insistiu para que o Expresso da Vitória disputasse o Sul-Americano. Sujeito de visão.
Abaixo, a terceira das quatro matérias de Hélio Fernandes
Revista O Cruzeiro, edição 26, de 17 de abril de 1948
"Chegou a ponto de marcar impedimento de Chico depois do ponta vascaíno ter driblado os dois zagueiros. É preciso contar mais alguma coisa?"
Hélio Fernandes

Sete foram os juízes que atuaram no Torneio dos Campeões, sem contar naturalmente o quase desconhecido uruguaio Fernandes, que estreou precisamente no último jogo, depois de decidido o campeonato. 
Três chilenos, White, Lesson e Madrid. Um certo Sr. Paredes da Bolívia. Valentine do Uruguai. Fortes da Argentina e Malcher do Brasil. Cada um deles levou para Santiago, ao lado de excessivo ardor patriótico, manias e regras diferentes, interpretações as mais absurdas do regulamento internacional, transformando a pacata cidade chilena numa edição de bolso da famosa Torre de Babel.White é a mais completa vocação de guarda-noturno que conhecemos. Mete o apito na boca e só fica satisfeito quando escuta o som estridente que seu próprio sopro arranca do aparelho inanimado. Narciso de nova espécie, entra em campo munido de pente, escova de unhas, leite de rosas para a pele, tesourinha para o bigode, esperando-se a cada momento que puxe de um dos bolsos o espelhinho que há de reproduzir a própria imagem, proporcionando-lhe uma satisfação inigualável.Lesson, possuidor de milhões de pesos e de fazendas quilométricas, talvez deslumbrado com a vastidão da própria fortuna, não teve tempo de aprender regulamentos. Autodidata em matéria de arbitragens, criou regras particulares que aplica em espetáculos públicos, criando com isso enormes complicações.Madrid é o melhorzinho dos três, havendo até quem assegure que sabe ler e escrever. Até lá não chegamos nós. Começou mal, e para melhorar precisou de um delicado estímulo de Diogo Rangel, que disse-lhe ao ouvido: a sua formidável cara de cachorro não está agradando aos brasileiros.O Sr. Paredes, boliviano de nascimento e chileno por merecimento,  foi o mais estranho dos juízes que apareceram em Santiago. Desconhecido até de alguns membros da própria delegação, andou mendigando por muito tempo uma arbitragem, porque, chorava ele, “não posso voltar para a minha terra sem ter atuado pelo menos uma vez.” Rondava Diogo. Rondava Simon do Uruguai. Cercava Marin por todos os lados. Até que acabou premiado. Escolhido para atuar em Vasco x Colo Colo, foi visto no sábado antes do jogo em doce e idílico colóquio com o presidente do clube local, colóquio que durou algumas horas. Entremeado de instante a instante por abraços amistosos, risinhos e segredinhos ao ouvido. 

E que acertaram seus relógios nesse encontro noturno, basta ler a crônica dos próprios jornais chilenos, que afirmaram – Revista Hercília, La Nacion e Diário Ilustrado – que errar como o Sr. Paredes errou, só deliberadamente, de espírito preconcebido. Por uma coincidência espantosa, o Sr. Paredes errou durante  90 minutos, sempre contra o mesmo clube. Os ataques do Vasco eram paralisados à entrada da área, de qualquer maneira e sob qualquer pretexto. O Sr. Paredes primeiro apitava. Depois escolhia a punição. Chegou a ponto de marcar impedimento de Chico depois do ponta vascaíno ter driblado os dois zagueiros. É preciso contar mais alguma coisa?

O Sr. Fortes, muito conhecido de outras épocas, não teve oportunidade de exibir suas habilidades, atuando uma única vez, assim mesmo num jogo sem importância.

Ao Sr. Valentine, já por duas vezes – 1945 e 46 – protagonista em dramas dos quais nosso país também participava, coube o mesmo papel desta vez. Por eliminação, ficou como único candidato a dirigir Vasco x River Plate, o que efetivamente veio a suceder. Dias antes do jogo, garantiu a Diogo na presença de jornalistas que seu maior desejo era reabilitar-se dos fracassos dos anos anteriores, e que, disposto a encerrar sua carreira de juiz, muito satisfeito ficaria se isso acontecesse com uma vitória do Brasil.
E realmente fez nesse jogo sua maior arbitragem. Calmo, sereno, acompanhando bem as jogadas e marcando com precisão, foi de uma imparcialidade a toda prova. E mesmo no famoso gol de Chico, nenhuma acusação mais séria lhe pode ser feita. Errou sem dúvida nenhuma ao assinalar impedimento de Chico. Mas o fato passaria apenas como um erro, perfeitamente desculpável, se para infelicidade sua, concluindo ilegalmente a jogada – depois do claro e indiscutível apito – Chico não aninhasse a bola nas redes argentinas.Descontrolando-se em face da atitude da torcida que queria o gol, e deixando-se levar pelo delírio dos jogadores vascaínos, tentou reformar a própria decisão, apontando timidamente para o centro do gramado. Mas o apito fora estridente demais, e os argentinos não se conformaram, passando a exigir, aos gritos e mesmo a socos, a cobrança do impedimento. Reagindo nobremente contra a fraqueza momentânea, o Sr. Valentine mandou bater o impedimento, conseguindo com essa decisão, mantida a despeito de tremenda vaia, levar o jogo até o final.
Finalmente, ao brasileiro Malcher, o último a estrear, coube a missão mais perigosa e delicada: contrariar os desígnios comercias do antiesportivo Robinson Álvares Marin.Malcher deveria estrear dirigindo River x Nacional. Mas como os gênios da delegação acharam que o jogo era importante demais, resolveram que Malcher adoecesse, apesar dos protestos do rapaz que, realmente corajoso e confiante nas próprias qualidades, queria apitar de qualquer maneira. Não conseguiu. Foi então indicado para Colo Colo X Nacional. Mas no intervalo excursionou a Concepcion com o quadro uruguaio, onde foi pivô de incidentes desagradáveis, apenas porque não quis atuar de acordo com a toada muito em voga no país andino: favorecer sempre o time da casa, qualquer que seja o adversário.
Com essa demonstração de energia e desassombro do árbitro brasileiro, assustou-se Robinson Marin, que na primeira reunião propôs a sua troca por Fortes, argumentando que “o público talvez não compreendesse a indicação de um juiz que já havia provocado incidentes em um jogo amistoso”. Mas como o delegado uruguaio manteve-se intransigente, não houve outra saída e Malcher foi mesmo indicado.Mas que ele seria sacrificado aos interesses inconfessáveis do presidente do Colo Colo, ninguém tinha dúvidas. Iniciado o jogo, viu-se que o ambiente estava bastante carregado contra Malcher e que tanto o técnico como os jogadores do Colo Colo estavam industriados para jogá-lo contra a multidão. Os bandeirinhas também tomaram parte na comédia, visando apenas criar confusão.Sentado ao lado do pavilhão do Vasco, Robinson Marin era quem mais torcia. A cada marcação ordenada contra o Colo Colo, ele levantava-se e, virado para as tribunas, exclamava dramaticamente:  “com esse juiz é impossível ganhar”.No lance que provocou a primeira interrupção, lance perfeitamente justo com um gol licitamente conquistado. Marin aproximou-se do bolo formado em volta do juiz e, em vez de acalmar os que desejavam linchá-lo, incitou-os com essa frase, que é um primor de indecência e falta de esportividade:  “este juiz é um ladrão e está vendido ao Nacional”. Daí em diante valeu tudo. 

Finalmente, quando os locais exigiam a marcação de um pênalti que não existiu, Malcher muito justamente suspendeu a partida, recusando-se a continuar por falta de garantias. Era a única decisão a tomar e ele só merece aplausos por isso. Começaram então as maquinações de bastidores, quando os dirigentes chilenos, na quase unanimidade, puseram as cartas na mesa e mostraram seu jogo escuso.  O Sr. Afonséa, presidente da Divisão de Honor, fez um comício contra Malcher declarando- o único culpado pelos acontecimentos. O chefe dos carabineiros, um senhor com muitos galões e pouca compostura, depois de conversar em segredo com Marin, transmitiu a Malcher a notícia definitiva: se não continuasse, não haveria garantias.Diante disso, depois de confabular com os chefes da delegação e ouvir-lhe os conselhos, Malcher resolver voltar a campo e dar prosseguimento ao jogo. Mas o ambiente estava tão impregnado de terror, que o bispo de Santiago, presidente da Universidade Católica, presente ao vestiário, declarou-lhe:  “Que Deus o proteja, meu filho. Só Ele o salvará.” 
E realmente os dois gols que o Colo Colo conquistou em cinco minutos, perfeitamente lícitos, têm sabor de milagre, e só à influência divina podem ser atribuídos. Eles deram ao clube local a tão desejada vitória, e mais do que isso, evitaram uma catástrofe que já se desenhava nitidamente, e que na certa se consumaria se o Colo Colo tivesse perdido.Mas de todos os incidentes quem saiu engrandecido, definitivamente glorificado, foi Malcher. Ele demonstrou uma honestidade a toda prova, uma energia fabulosa e uma coragem inescedível, além de um conhecimento precioso das regras internacionais e da maneira de aplicá-las. Ele foi o melhor juiz do campeonato. Disso ninguém tem dúvida.

O Vasco, a imprensa e um blog no meio

Vassalo de nobrezas perdidas, a valorizar vitrais e troféus por bom comportamento, entregues por príncipes em nome da fidalguia, o Flum...