sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Ode aos goleiros e ao jornalista estrangeiro


 "...o especialista estrangeiro foi o único na mesa, e na cobertura em geral da final, que se saiba, foi o único a lembrar que o goleiro mais decisivo da decisão, vencedor, campeão, vinha do que ele chamou ao vivo, na lata, de grande escola do Vasco da Gama. Fábio era do Vasco, garoto, quando Carlos Germano era titular e Helton era reserva."

Enquanto não volta o Brasileiro, nesse período chato do calendário sem jogos do Vasco, é tempo ainda de lembrar o último grande acontecimento do futebol nacional, a final apoteótica da Copa do Brasil em dois embates sofríveis, decididos, com o reconhecimento e a condenação da mídia especializada, pelos goleiros. E no programa de tevê que tem redação no nome, cujo apresentador, diga-se de passagem, é um dos poucos no ramo a cutucar a flapress de vez em quando, neste programa estavam reunidos o editor da sacaneada no Muralha (aquela do editorial de primeira página retirando o apelido do goleiro) e o jornalista estrangeiro.

Na manhã seguinte à sofrida derrota rubro-negra, derrota no pênalti do craque do time, que assim provou fazer jus, sim, claro, à tradição da camisa 10 da Gávea, na manhã seguinte à derrota que alçou o Flamengo ao posto de maior vice da história da Copa, o clima na grande mídia em geral era muito mais de tristeza, perplexidade, do que de alegria. Ninguém nunca iria imaginar, nesse clima, nem bem dez horas depois da escorregada final de Thiago Neves, ninguém jamais pensaria em homenagear ao vivo, justamente, o Vasco, ninguém a não ser o jornalista estrangeiro, no caso, do país dos inventores do esporte.

Imune às verdades e veredictos repetidos a esmo nas redações daqui pra justificar o protecionismo, que a torcida é maior, compra mais, reclama mais, o especialista estrangeiro foi o único na mesa, e na cobertura em geral da final, que se saiba, foi o único a lembrar que o goleiro mais decisivo da decisão, vencedor, campeão, vinha do que ele chamou ao vivo, na lata, de grande escola do Vasco da Gama. Fábio era do Vasco, garoto, quando Carlos Germano era titular e Helton era reserva. O jornalista estrangeiro lembrou isso e disse, ainda, que o goleiro do Cruzeiro, que pegou pênalti do Luan na semifinal e do Diego na final, aliava a frieza, a colocação de Germano com a elasticidade de Helton, o que não deixa de ser verdade.

O assunto foi rapidamente debelado, não se falou mais de Vasco na mesa, claro, mas aqui fica o elogio tardio à capacidade de observação do jornalista estrangeiro, e a defesa de cada vez mais intercâmbio na nossa mídia esportiva, pra arejar conceitos, valorizar mais a história em detrimento da quantidade de cliques ou curtidas. Fica também a inspiração para um texto em homenagem aos goleiros históricos, campeões pelo Vasco, e como quem escreve nasceu em 1972, pede-se licença ao Nelson mitológico de 1922, 23 e 24, ao Jaguaré inigualável de 1929 e 31 (de quem peguei o rosto emprestado no perfil, não sei se perceberam), ao maior de todos, Moacir Barbosa, ao Carlos Alberto de 1956 e 57, ao Andrada de 1970 e 74 e a outros goleiros de antigamente, porque só é possível falar de quem se viu jogar no campo, in loco, e nesse caso a lista tem de começar com um goleiro que tem tudo a ver com a grande questão da decisão, a escolha pra que lado pular na decisão por pênaltis, esse saltando aí em cima, na foto do Wilson Alves Cordeiro.

Mazaropi já tinha pegado, sem rebote, o pênalti de Zico na decisão da Taça Guanabara de 1976. No ano seguinte, a decisão era do segundo turno, ainda não Taça Rio, e o Vasco, bicampeão da Taça Guanabara em 1977, seria o campeão estadual se vencesse. Assim como Alex Muralha, bode expiatório das frustrações alimentadas no dia-a-dia dos prognósticos sempre positivos da mídia, nas três primeiras cobranças do adversário, no caso o Flamengo, Mazaropi pulou para o mesmo lado e tomou o gol. Muralha manteve-se fiel à sua direita e deu no que deu. Mazaropi trocou o canto na quarta cobrança, do então garoto novo Tita, e defendeu. O Vasco foi campeão carioca e ali, no Maracanã lotado, Mazaropi conquistava mais 90 minutos sem ser vazado, na caminhada que lhe rende até hoje o recorde mundial absoluto, disparado, de minutos seguidos sem tomar gol, 1816 minutos de maio de 1977 a setembro de 78, muito por conta também de uma linha de defesa com Orlando Lelé, Abel, Geraldo e Marco Antônio, que ficou um turno inteiro do estadual sem levar gol e tinha o singelo apelido de Barreira do Diabo.

O que mais dizer de Mazaropi? Que ele mandava abrir a barreira quando o Zico ajeitava a bola pra bater falta na entrada da área, mandava abrir e pegava, e que ele também fez história no Grêmio, campeão da Libertadores e Intercontinental, pegando, de novo, pênalti fundamental, contra o América de Cáli. E Mazaropi defendia ainda o Vasco quando o sucessor dele já nos dava alegrias, pegando tudo no denso nevoeiro da serra, antes e depois do gol de Anapolina.

Acácio era o goleiro do Serrano na vitória histórica da briosa equipe petropolitana, que tirou do Flamengo a chance de um inédito tetracampeonato, ainda que em três anos, em 1980. Dois anos depois foi alçado à titularidade às vésperas do triangular final do campeonato, entre Vasco, Flamengo e América. E diante de Tita, Adílio, Nunes e toda essa gente que o outro lado canta em verso e prosa, diante dessa galera, recém saído do Serrano, do banco do Mazaropi, Acácio fechou o gol com direito a defesa em chute pegando na veia de Zico dentro da área, iniciando uma bela tradição pessoal, de agarrar como nunca em decisões, sem deixar passar nada, o que conseguiu repetir nos estaduais de 1987, 88 e, principalmente, no Brasileiro de 1989.

Acácio conseguiu ainda pegar mais pênaltis que Mazaropi, beneficiado também por ter jogado todos os jogos de um Brasileiro em que o empate, em qualquer jogo da fase inicial, levava à decisão dessa forma. Num jogo contra o Fluminense, todo mundo acertou e a decisão ficou para os goleiros. Acácio pegou o chute de Ricardo Pinto e, depois, fez o gol chutando no canto fraco, errado, pererecando. Pegou ainda pênalti do Higuita, num jogo depois anulado, na Medellín onde reinava Pablo Escobar. E no solo sagrado do Estádio Nacional de Santiago, onde Barbosa fez o que fez contra o River Plate de Di Stéfano, Acácio honrou a tradição pegando o pênalti decisivo contra o Colo Colo, nas oitavas-de-final da Libertadores de 1990. Um ano depois, antes de ter sua trajetória erroneamente interrompida por Régis, o que nos custou o Brasileiro de 1992, Carlos Germano já se apresentava como legítimo sucessor de Acácio.

A calma desde muito novo, as defesas parecendo, todas, fáceis, a colocação perfeita e o primeiro tricampeonato da história do Vasco com o mesmo goleiro nos três anos, assim começou Carlos Germano quando, enfim, se firmou no Vasco. A impressão, pelo menos a da memória combalida, é de que ele não caía, nem quando pulava lá no canto, nem pertinho do ângulo, no alto, como na falta do Gallardo na semifinal da Libertadores, em São Januário. O Carlos Germano dava a impressão de que pulava e continuava sempre de pé, tal a simplicidade com que ele defendia as bolas, sem nada de acrobático, como se cumprisse a rotina de sempre, batendo ponto, sem chegar nem perto, graças aos céus, de cometer o pecado de vibrar antes do apito final, por qualquer defesa isolada, imperdoável na gangorra que é a vida de um goleiro.

Foi desse jeito calmo, caindo de pé, sem perder o ar de sujeito tranquilo, cumpridor de seus deveres, que Carlos Germano evitou talvez uma briga feia, totalmente desarrazoada, na arquibancada apertada do Maracanã, no minuto final da decisão do Brasileiro de 1997, quando Oséas subiu deixando Odvan na saudade, pra cabecear o cruzamento perfeito a dois passos da pequena área e na frente dele, tapando a visão do lance bem naquela hora apareceu do nada a mão do vendedor, as faixas, e o grito do cara: olha a faixa do Vascão campeão! Se a bola entrasse, era bem possível que este torcedor ensandecido, aos vinte e cinco de idade, entrasse numa de arrumar confusão sem razão alguma pra isso, mas nada aconteceu graças a Carlos Germano ali, no lugar exato pra defender sem cair, como se fosse fácil, garantindo o tri nacional e depois, no ano do Centenário, o bi sul-americano, ele que assim como Acácio e Mazaropi, tinha o seu sucessor no banco.

Herdeiro da linhagem de Nelson, Jaguaré e Barbosa, Helton entrou no time mais ou menos como Acácio, só que em vez de final de Carioca, foi jogado às feras no primeiro Mundial da Fifa. Na final não tomou gol e pegou pênalti do Marcelinho, e naquele ano mesmo iria protagonizar aquela que talvez seja a atuação mais espetacular de um goleiro do Vasco, pois parece mesmo não haver registros cinematográficos, infelizmente, do que Barbosa fez ao pé da Cordilheira dos Andes, diante do ataque tido como fulminante de La Máquina.

Contra o mesmo River Plate, só que no estádio dele, em pleno Monumental de Nuñez Helton deixou estupefatos os argentinos num jogo em que até drible de letra deu em atacante adversário, um jogo em que o Vasco foi pressionado constantemente por Burrito Ortega, Pablo Aimar, Saviola e Cia e... ganhou de 4 a 1. Depois o Helton conquistou Mercosul e Brasileiro ao mesmo tempo, como nenhum outro goleiro, e em termos de carreira, talvez tenha sido o mais bem sucedido de todos eles, pois fez história como titular absoluto, durante anos, de outro clube gigante, de outro continente, no caso o Futebol Clube do Porto, onde, entre algumas copas e campeonatos portugueses, ergueu como capitão a Liga Europa.

Fábio estava no banco de Helton e teve tempo de ser campeão estadual como titular absoluto em 2003. No ano seguinte, abandonou o clube que rondava a zona de rebaixamento pra ir fazer sua história no Cruzeiro, encerrando a feliz fileira de bons goleiros, um atrás do outro desde Andrada, e deixando um vácuo só preenchido cinco anos depois, por Fernando Prass.

Primeiro goleiro a erguer uma taça como capitão no Vasco, no caso a Copa do Brasil de 2011, Prass não conquistou outro título, mas fez aquela sequência de defesas cara a cara no fim do jogo contra o Flamengo no Brasileiro de 2010, num dos derradeiros jogos do velho Maracanã. E dois ou três minutos depois, já nos descontos, pegou falta do Petkovic, garantindo a não derrota para o maior rival naquele jogo histórico, o último do time no estádio de toda uma cidade, imortal, tão bem inaugurado, em termos de clubes, pelo Expresso da Vitória, com a primeira taça, e cuja alma foi assassinada pelo capital financeiro, sob sorrisos de ignorância complacente da mídia especializada sem um texto sequer, sem uma campanha contra nem qualquer contestação ao projeto que viria a descaracterizar e inviabilizar comercialmente o Maraca, todos, repórteres, editores, cronistas, todas à época embasbacados pelas cadeirinhas acolchoadas, dobráveis, do tal padrão Fifa.

Fernando Prass fez ainda outra incrível sequência de defesas cara a cara nos minutos finais, e contra outro rubro-negro, na vitória suada de 1 a 0 sobre o futuro rebaixado Atlético Goianiense, no Brasileiro de 2012. Lembro-me bem dessa porque vi de perto, da social de São Januário, e me recordo ainda mais da maioria da torcida, os mais jovens, saindo do estádio revoltada, vaiando porque o time tinha jogado mal, e eu felicíssimo com os três pontos no campeonato de pontos corridos, com a vitória do Vasco garantida por Prass que não tinha a unanimidade da torcida, era criticado por boa parte dela, inclusive, até sair do Vasco pra fazer sua história no Palmeiras, e passar a ser muito mais valorizado pelos vascaínos, até por quem não gostava dele.

O vácuo dessa vez foi de um ano apenas, tempo suficiente para um rebaixamento e pra que os ares cisplatinos nos enviassem o goleiro que já é bicampeão estadual, um deles invicto, e que defendeu o Vasco na maior sequência sem derrotas de sua história. Longa vida a Martin Silva, que ainda tem muito a conquistar até 2020 e além, honrando a tradição exaltada não por ninguém da triste, inchada imprensa esportiva nacional após derrota tão sofrida, na marca da cal, não, mas por ele que, assim como os goleiros, merece nossa homenagem: o jornalista estrangeiro.

O Vasco, a imprensa e um blog no meio

Vassalo de nobrezas perdidas, a valorizar vitrais e troféus por bom comportamento, entregues por príncipes em nome da fidalguia, o Flum...